Escorregou
pelo chão quente o seu corpo suado. Já estava só de cueca – sol o obrigara.
Ventilador não supera meu fogo, repetia a si mesmo, enquanto escorria. Em sua
cabeça, via-se como uma massa gelatinosa, grudenta. Era o calor, repetia. Tudo culpa
do calor. Se não houvesse essa quentura, tudo seria melhor, eu estaria correndo
por campos verdejantes como na clássica cena de A Noviça Rebelde. Se não
houvesse mormaço, quarto não teria se tornado este abrigo subterrâneo contra
bombardeios. Abrigo inútil. Vento ainda entra pelas frestas e me arranca o
couro. Derreto.
Assim, derretido, lembrou-se da
mensagem que recebera pela manhã. Um amigo distante, daquela outra vida, dizendo:
Olá, tudo bem? Sinto sua falta. O que tem
feito? Não se esqueça de que existo. E como esquecer, seu filho da puta?
pensou, mas não respondeu a mensagem prontamente. Levantou-se da cadeira,
gastou a manhã com outras hesitações e até conseguiu ignorar o atordoamento.
Mas nada escapa ao meio-dia. Nada consegue fugir do sol a pino. E, então, como
esquecer este ostracismo? Esse silêncio todo que separou nossos corpos
intocados. Se não fosse a porra do seu silêncio, talvez eu tivesse insistido na
outra vida, fumando maconha e pensando que o mundo pode ser melhor. Se não
fosse seu namoro de adolescência – seis anos! Crescemos, amadurecemos juntos. Sei, sei, sei.
No chão morno, lembranças repentinas
misturadas a água e sais minerais: o dia em que foi acordado pelos carinhos
dele no sofá de um amigo, festa ainda acontecendo ao redor, acordou e ele
alisava seu cabelo, falava algo sobre ter perdido a virgindade com a namorada,
mas, mesmo depois de tudo, estar confuso se ainda poderiam continuar. Outra
lembrança maldita: os dois caminhando no meio de um aglomerado de pessoas, de
mãos dadas para não se perderem um do outro. E mais: o dia em que ele o levou
em casa de moto e deixou sua mão recostada na coxa do amigo na garupa. Eu, o
amigo da garupa, sem saber o que fazer com aquela mão, tentando ao máximo me
afastar dela porque não queria dar bandeira, não queria passar a impressão de estar dando em cima de um amigo hétero. A
última recordação não veio porque até hoje não sabe como se despediram. Apenas
chegou o dia em que não fumava mais, nem havia utopia, só o calor que de tempos
em tempos trocava sua pele.
Tentou se colocar no lugar do outro.
E se houvesse desejo verdadeiro engolido a seco? O que fazer com aqueles seis
anos de namoro? O que fazer com o amigo hesitante? Abraçar-lhe mais forte?
Dizer com o abraço que é, é verdade?
Repeli-lo e dizer com a distância presente que sim, continua sendo? Silenciar-se? Ir embora da cidade? Pedir a namorada
em casamento? Casar, ter filhos, sonhar com o amigo de outro tempo, ter
repetidas poluções noturnas, mandar-lhe mensagem em algum momento? O que fazer
com o desejo? E a falta de desejo, em que resulta? Foda-se a alteridade.
O único fato palpável é a quentura
de tudo. E o passado. E as marcas do tempo. Ah, que poético! Marcas do tempo. Parece nome de novela
ruim. Essa história toda soa como uma Malhação
do lado b. Se crises existenciais gays passassem na tevê – filosofou por algum
instante. Mas não passam. Tudo um dia vira silêncio. Tudo agrupado no mesmo
floco de sujeira intitulado: Silêncio Constrangedor.
Levantou-se do chão, mas tudo ao
redor já era água salgada. Nadou até o computador. Respondeu ao amigo de outras
vidas que sim, tudo ia bem, muitíssimo
bem, citando Caio, e no final anexou a cena de A Noviça Rebelde, anexou
os campos verdejantes, não citou que na vida de agora fazia muito calor. E a
pele ainda não fora completamente trocada.
***
Douglas
de Oliveira Tomaz, nascido em 1993, é autor do blog pessoal www.abrigosdevagabundo.blogspot.com.br,
recebeu uma menção honrosa no concurso literário do Clube de Escritores de
Ipatinga – MG (Clesi), edição 2013, e possui textos seus publicados pelas Revista Jangada. Em 2015, lançou de modo
artesanal seu primeiro livro de poemas: Escorre.
Atualmente, reside em Pirapora - Minas Gerais.
Ilustração:
Vinícius Ribeiro.
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