sábado, 14 de maio de 2016

Escuro preto



Aqui, rejeitos abjetos de mim. Um modo de subsistir que consigo perceber e quase compreender agora, mesmo que razão enlouqueça. Crescer sem nenhum ideal no espelho de horas ou eras. Questionário: Quem descobriu o Brasil? Pedro Álvares Cabral. Quando? Dia 22 de abril de 1500. Sobrevida: farsa do abecedário amparado por números. Sim. Agora quase compreendo o menino que perdeu o pai muito cedo e nem se deu conta.

Casa transformada em velório cheia de visitas. Murmúrios. Rezas. Lamentos. Lágrimas. Sorrisos forçados. “Corre lá na venda e compra café.” Meus pés em brasa. Minhas pernas velozes. Nasci descalço e nu. Cresci descalço e seminu. “Meus pêsames.” Sofro por saber que me disfarcei bem demais por tão longo tempo. “Meus sentimentos, Maria.”

Maria, viúva fadada a morrer não tão muito tempo depois do marido. Triste Maria de uma saga de abnegação e entrega. “Deus é mais.” Respira fundo. Passa a mão espalmada sobre os olhos chorosos. Corro até a venda e volto com o pacote de café. Recebo um cafuné de meu tio Oswaldo. “Bão menino.” Alegria tola em mim por achar que meu pai, no caixão, frio, indiferente a qualquer senso de consternação dos que momentaneamente o amparavam, era estimado. 

Penso no aro retirado de pneu que eu fazia rodar pelas ruas de cascalho. Nos tão demais fatos que giraram até aqui. Às vezes ainda me sinto permanecer naquele estado de sono acordado. Água, comida, mais a arte tida como parte de um desencontro. Meu reino desencantado. Vem cá, cavalo bobo, cavalo-de-pau.

Desconfio, com temor, dos que dizem que um sonho pode se tornar realidade. Aprendi como muitos, na escola, que a primeira impressão fica uma vida: cheiro de álcool e tinta de estêncil no obsoleto mimeógrafo. Este escuro preto resistirá aos que se aferram a instantes dignos de abominação. Cortes na árvore causam dor.


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Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).


Ilustrações: Vinícius Ribeiro (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)



sexta-feira, 6 de maio de 2016

Primeira caminhada



Belo Horizonte, Minas

Minha cama fica embaixo da janela. Deitado, consigo vislumbrar pedaço de céu, pedaço de prédio. A cortina não é capaz de cobrir o vidro por completo. Isso quer dizer que, em todas as manhãs, acordo com a luz forte do sol em meu rosto. Preciso passar filtro solar antes de dormir. Penso.

É domingo. Decido fazer uma primeira caminhada pelo bairro. Calço o tênis de caminhar que é o mesmo desde os dezessete anos, o mais confortável que ainda tenho. Duas constatações ao calçar o tênis: meu pé parou de crescer, caminho pouco.

Paro na banca de revistas. A Piauí tem o mesmo preço aqui ou em qualquer outro lugar do país. Esse fato nos conecta: eu e você, eu e os moradores do Piauí, eu e o outro, morador da cidade de onde vim. O preço da Piauí me conecta.

Mapeio: um supermercado, dois cabelereiros, uma universidade, um aeroporto, uma praça, um shopping, uma pequena alameda comercial – nenhum rio. Dentre esses itens, percebe-se a proeminência do aeroporto. Vários estabelecimentos saúdam-no: AeroBalas, AeroShopping, AeroBurguer, AeroPão, Varejão Aeroporto. A Churrascaria do Manuel e o Restaurante Maria das Tranças, embora ignorem a reverência, também são nomes dignos de nota. Julgo eu.

Acordei em silêncio, almocei em silêncio, faço esta caminhada completamente calado. Prefiro me perder a pedir informação, hoje é domingo. Dia de descanso da fala. Permito aos pés falarem no lugar da boca. O ruído emitido é palavra. Evito o uso do mesmo vocabulário de dias da semana. Oi, bom dia, como posso chegar à avenida Santa Rosa? E o aeroporto, onde fica? Meus pés produzem neologismos.

O som dos aviões me acorda junto com a luz do sol entrando pela janela. Moro a duas quadras do aeroporto e próximo, muito próximo do sol. O que já foi mencionado.

Passo em frente a uma igreja, onde se concentra uma grande quantidade de mendigos. Estão deitados na calçada, onde suas sacolas e lonas também se deitam. Descansam, pensam, morrem. Eu morro caminhando – mas, na maior parte do tempo, morro deitado em minha cama, olhando pedaço de céu, pedaço de prédio. Caminho pouco. O quanto de desespero é convertido em fé?

Encontro um amigo de outra vida enquanto folheio a Piauí na banca. O vendedor discute futebol com um cliente, os moradores desta cidade dão muito valor ao futebol, é o que penso quando o amigo de outra vida chega, toca meu ombro, me abraça e diz: o que você está fazendo aqui? Iniciamos conversa. A conversa termina. Prosseguimos caminhada: eu em minha direção (qualquer uma), ele na dele (mais certa). Passo em frente à drogaria Cristina, cuja matriz fica em Pirapora. Há uma franquia da drogaria Cristina em meu novo bairro, paro na porta, espanto na cara. Uma vendedora me olha lá do fundo, ri de mim, forasteiro flagrado. Não, não é possível ser desconhecido em Minas. Não é possível passar despercebido. Perder-se.

Volto pra casa.


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Douglas de Oliveira Tomaz, nascido em 1993, é autor do blog pessoal www.abrigosdevagabundo.blogspot.com.br, recebeu uma menção honrosa no concurso literário do Clube de Escritores de Ipatinga – MG (Clesi), edição 2013, e possui textos seus publicados pela Revista Jangada e Conhecimento Prático - Literatura. Em 2015, lançou de modo artesanal seu primeiro livro de poemas: Escorre. Atualmente, mora em Belo Horizonte.


Ilustração: Vinícius Ribeiro (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)