terça-feira, 30 de agosto de 2016

Arribação: "Praça XV" - Cecília Donateli



PRAÇA XV

Juro que não foi por ter sede
que retornei à rua
mas porque parecíamos nascidos
para perder na vida
muito mais que o Johnny Thunders
E quando se diz perder na vida
existe uma certa crueldade
sumamente quotidiana
que não se ignora
Juro que não foi por ter fome
que retornei à rua
mas porque o corpo
na medida do possível
permaneceu essa montanha
mais frágil que o direito mais frágil do mundo
mais frágil que uma democracia
mais frágil que uma bacia hidrográfica
Por exemplo mais frágil que a marretada
que nenhum de nós dá
nos muros todos de Berlim


***

Cecília Donateli (1989) é capixaba, mineira e carioca em um corpo só. Graduou-se em Direito. Para compensar esse auto-boicote, escreve poemas.

sábado, 13 de agosto de 2016

Anotações sobre cachoeiras


1)      Para se chegar a uma cachoeira é preciso, antes, percorrer uma trilha.

2)     Anterior à trilha, porém, é o povoado. Em todo povoado há um bar chamado O pior buteco do mundo.

3)      Ainda nesse lugarejo, onde há praça, supermercado e feira, é possível encontrar um antiquário, um que seja, que por alguma razão misteriosa só abrirá à noite suas portas.

4)   Parece impossível localizar-se enquanto se anda. Por isso, utilizam-se filmes para marcar a trilha. Rocky Balboa aqui, nesta planta com bíceps; A noviça rebelde ali, naquele campo onde alguém gira. Como a demarcação paira nas cabeças que caminham e desaparece quando elas se vão, outros que chegam não saberão localizar os bíceps, não verão alguém no campo vasto. Exceto no caso de terem fixado os cartazes dos filmes pelas árvores e rochas, será preciso inventar novas referências.

5)      Há sempre, em toda trilha, tempo de parar e esperar.

6)      Os pés que deslizam, o corpo que cai.

7)     E há a cachoeira. Mas antes, por todo o caminho, pedras empilhadas, círculos de pedras com uma ao centro, Stonehenges em miniatura.

8)     No meio d´agua, basta correr os olhos, há uma rocha triangular e, em sua frente, outra, ainda maior, com um círculo atravessado em seu peito. É possível atravessar a rocha pelo meio, como se atravessa uma porta.

9)      Dessa cachoeira em diante, só haverá o caminho pela água.

10)  Catam-se perdas. E água quando encontra água faz silêncio.

11)  Há sempre um cachorro morando na beira. Ele se acomoda entre as pedras, alimenta-se de quem chega (e de moscas), conhece como ninguém todas as pegadas, o atrito secular entre o rio e as rochas.

12)  A água é gelada, faça chuva, faça sol. A única vantagem do extremo frio é esta dúvida: são os músculos ou os ossos que se enrijecem? Os pelos se arrepiam, isso sabemos.

13)  O mergulho só revela a nossa profundeza. Os olhos abertos de quem mergulha capturam apenas dois braços perdidos tentando tocar.

14)  Catam-se pedras. Alguns as levam para casa, outros as abandonam.

15) Ao redor, o vale das garrafas, das maçãs empodrecidas, o município dos pães duros, das camisinhas, o distrito da Elma Chips, o bairro das sacolas plásticas. Cabe fazer visita.

16)  Outras pessoas estão sentadas, encolhidas de frio, tomando sol, submersas. Algumas, querendo roubar o status de queda, pulam. Outras respeitam o fato de que queda mesmo só há uma, aquela que dura – não pulam. E existe, ainda, a moça que no alto somente olha para baixo, pois sabe que o medo é outra forma de reverenciar.

17)  Recomenda-se levar poemas, ler para si mesmo. Quem tiver algum decorado, cantarolá-lo pelo caminho, diante das ribanceiras.

18)  A trilha de volta já não é a mesma. Tudo muda depois que você chega.



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Douglas de Oliveira Tomaz, 23 anos, é autor do blog pessoal www.abrigosdevagabundo.blogspot.com.br, foi premiado pelo concurso literário do Clube de Escritores de Ipatinga – MG (Clesi) e possui textos seus publicados pela Revista Jangada e Conhecimento Prático - Literatura. Em 2015, lançou de modo artesanal seu primeiro livro de poemas: Escorre. Atualmente, mora em Belo Horizonte, onde escreve seu primeiro livro de contos.


Ilustração: Vinícius Ribeiro (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)