Estacionamos o carro na antiga rua dos cabarés, batizada
oficialmente como rua Rio Grande do Norte. Ouvi
dizer que, na época do transporte fluvial pelo Velho Chico, quando Pirapora foi
um ponto importante de carga-descarga, embarque-desembarque, nesta rua
concentraram-se muitos cabarés, disse para David, que olhava perdido para
as casas tentando encontrar resquícios desse passado narrado. É mesmo? respondeu-me admirado, gente, que beleza.
Assim iniciamos nossa caminhada pelo bairro Nossa Senhora Aparecida,
berço da cidade de Pirapora (MG), bairro de pescadores, lavadeiras, marujos,
mulheres da vida, gente que ia e vinha, seja de casa pro rio, do rio pra casa,
ou do rio para outros lugares. Pirapora sempre foi cidade de movimento – ao
contrário do que pensam alguns atuais moradores que só veem permanência no
lugar onde o Rio São Francisco está em constante ir embora.
Era tarde de uma quinta-feira, dia comum, exceto pelo sol
brando, ideal para caminhadas. Mais à frente, um grupo de crianças brincando
correu em direção a nós, que tirávamos fotos de velhas construções em ruínas: o que cês tão fazendo? perguntaram-nos. Tirando fotos, algum de nós respondeu. E vocês só tiram fotos de casa velha? Não,
de qualquer coisa relacionada ao bairro, respondemos entre risos. Ah! – saíram correndo, de volta para a brincadeira.
Outro morador, que ajudava os meninos a confeccionar uma
pipa, também chegou até nós, incomodado com esses dois rapazes desconhecidos
tirando fotos de seu pedaço. Chegou num tom de quem cuida da cria, meio
desconfiado, demarcando território. Logo dissemos que estávamos fazendo um
ensaio fotográfico sobre o bairro, o que lhe desfez os vincos da testa. Fiquem à vontade, nos disse no final da
curta conversa, como se abrisse as portas de sua casa, autorizando mexer na
geladeira.
Nessa hora, Ludmila, também moradora, cruzou a rua falando
alto em tom de deboche com esse morador que nos recepcionara. Ludmila anda
tranquila pelas ruas do bairro, trocando palavras com qualquer pessoa que
passa, como um eixo articulador de piadas e conversas. Olhou-nos de relance,
tirou sarro do jovem morador dizendo que ele estava grande demais para brincar
de pipa, ao que ele respondeu com outro sarro, coisa de gente íntima.
Prosseguimos caminhada. Ludmila entrou numa casa, depois saiu, sempre nos
olhando de relance, curiosa, também desconfiada. Desconcertados, chegamos até
ela, pedindo entrevista. Ludmila parece ser dessas pessoas sempre prontas para
tirar foto, tirar sarro, impor-se. Parecia também estar em todos os lugares,
ser alguém importante para o bairro, embora tenha nos confessado morar ali
apenas há cinco anos. Parados na esquina, nos disse:
– Todo mundo tem medo do bairro do outro. Eu adoro meu
bairro! Aqui antes era perigoso, não dava nem pra andar na rua, com medo de
bala perdida. Hoje tá tranquilo.
– O que mudou? – perguntamos.
– Aí cê me pegou. Não sei. Talvez o povo ruim tenha sido
preso.
– Talvez esse povo tenha tomado jeito.
– É.
Após a conversa, como suspeitado, autorizou a foto sem
nenhuma resistência.
***
Dona Maria, 83 anos, colocava o lixo na calçada de casa,
numa das muitas vielas do bairro. Nossa conversa rendeu bastante, quase puxamos
cadeira, pedimos café – quase.
– Moro há 70 anos em Pirapora, vim da Bahia. No bairro
Aparecida, moro há 55 anos. Eu que construí minha casa, quando eu cheguei só
tinha canudo, conhece canudo? Um mato que dá assim, pontudo.
– Outra moradora me disse que aqui antes já foi perigoso,
mas melhorou. A senhora acha que melhorou?
– Não sei. Será que já foi mais perigoso? Não sei. Nesse meu
pedaço é tranquilo, de vez em quando acontece umas coisas ali detrás, esses
trem de droga. Mas hoje todo lugar tem, né? Todo lugar tem desacerto.
Dona Maria serenamente nos conta como foi ter sua casa
inundada pela enchente de 79 e, transportando a questão da moradia para a
atualidade, revela, com certo assombro, que os moradores estão aterrando a
lagoa que apelida o bairro e construindo casas sobre. Nem existe lagoa mais, diz. E
o rio? Não gosto nem de ir lá, complementa, referindo-se à atual seca
enfrentada pelo São Francisco. Dona Maria gosta de conversa e, após um grande
silêncio, denúncia da prosa que finda, pergunta, meio afirmando: Cês tão procurando saber disso tudo aí pra
escrever depois? É, respondo. E,
sorrindo, balança afirmativamente a cabeça, como se eu respondesse o óbvio,
como se já tivesse passado por muitas entrevistas e estivesse calejada dessa
gente desconhecida que aparece fazendo perguntas do nada. Sobretudo, Dona Maria
parece gostar dessa gente, embora já a conheça o bastante. Antes da despedida,
reluta para tirar a foto, diz estar velha demais e detestar fotografia. Após
muita insistência, posa desconfiada, sem qualquer entrega.
***
A visita terminou na Rua da Liberdade, lugar de festas
juninas memoráveis, segundo contam. Entramos na ONG Afrogerais, que realiza trabalho de resgaste da cultura
afro-brasileira com crianças e adolescentes do bairro, oferecendo gratuitamente
oficinas de capoeira, bordado e dança. Lá encontramos Ivani, moradora da Vila
Branca, outro bairro de periferia da cidade, mas assídua frequentadora deste.
Cansados de caminhada, repousamos no exuberante jardim da casa e na fala de
Ivani que, distante o suficiente para generalizar na análise, mas próxima o
suficiente para empunhar afeto no que diz, assim definiu o Nossa Senhora
Aparecida:
– É o termômetro da cidade. Se você quer saber se o carnaval
tá bom, qual político vai ganhar, vá no bairro Aparecida. Acho que pela cidade
ter nascido aqui, o bairro tem uma energia diferente.
Fomos embora conscientes de não termos percorrido nem um por
cento do todo. Tudo é muito grande visto de perto. Por outro lado, algumas
impressões não cabem em palavra alguma e não estão aqui. É preciso pisar para
sentir. E o bairro Aparecida merece ver contada sua história. Existe algo muito forte enterrado aqui, disse
para David, que se manteve calado para desenhar depois. Algo enterrado, mas que
transborda pelas pichações nos muros, pelo alto número de praticantes de
umbanda e candomblé silenciados, pelo histórico de marginalização, pela
arquitetura barranqueira em ruínas. A palavra fúria, pichada em diferentes lugares, ecoa em minha cabeça enquanto
saio do bairro. Pode ser uma boa
definição para este algo enterrado, mostro a David. Ele concorda e sorri,
cintilando belezas.