domingo, 25 de junho de 2017

Arribação

Seguindo o caminho aberto no ano passado, meio de ano é tempo de migração. Tempo de peixe se mover, de artista se mostrar. Envie sua produção artística pra gente!

E releia aqui o que já foi publicado.



(arte de divulgação: Vinícius Ribeiro)

segunda-feira, 12 de junho de 2017

- corte



Antes que eu cortasse o cabelo há mais ou menos um mês atrás, ainda que minha perspectiva de tempo não me dê certeza dos dias, ou de como passam − mantive nos fios, antigos e mais longos, o sabor dos dias em que talvez te amasse. Não é totalmente absurdo dizer que a possibilidade de amor pesa a cabeça, e os cabelos precisam ir pra gente continuar vivendo sem carregar essa ideia no topo do mundo da gente mesmo.

Cortados os fios, cheguei em casa tranquila, mas olhei a janela um dia desses, o que me fez recordar, nos fios antigos, a visão da sua. A minha continua a dar pra varais e barulhos de carros e buzinas. O amor, sempre juvenil, é esse ruído todo, era o que minha mãe dizia enquanto eu chorava por alguma paixão adolescente. Pegava a tesoura, e ia aparando cuidadosa, ponta a ponta, às vezes me punha franjas, às vezes me desfiava, e o peso do mundo desaparecia, porque era outra a pessoa que surgia debaixo das tesouras de minha mãe.

Olhando as janelas: “despe-te dos ruídos”, aparecem os versos que não recordo de quem são e me gritam por dentro, como se lá, no profundo das coisas, existisse sempre alguém que me rodeia e me grita poesia quando me lembro de ti. Os cabelos crescem num outro tom de afeto, mas você vez ou outra me aparece num ruído ou sonho qualquer, e fico imaginando como teria sido se. A cabeça ruidosa se apega menos aos fios, às vezes, e experimenta o oco da luz do fim da tarde, o sino das horas inteiras da igreja do lado, de um dia na cozinha enquanto tateávamos, no escuro, a tentativa do corpo do outro.

Talvez haja amor não por ti, mas pela lembrança barulhenta que vem na fantasiação e me faz colocar Vinicius pra tocar em dia de sábado, como se cortasse os cabelos novamente e desfiasse no som das coisas o passo ruidoso que antecede a gente ante a esse esforço subtil de esquecer.

– porque hoje é sábado. 


***



Brenda K. Souza, 24 anos, mestranda em estudos literários.


Ilustração: Barbarete, ou Bárbara Louzada. Artista, tatuadora e geógrafa, sobretudo uma entusiasta da vida. Atualmente, estuda Artes Plásticas na Universidade Federal do Espírito Santo, mas conserva a certeza de que os cantos do mundo têm muito mais a ensinar e a revelar sobre o universo da arte e do sentir.