sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Arribação: "Ante meridiem" - Rafael Oliveira




Os algarismos vermelhos no letreiro do relógio marcam 00:00.
- Hora de ir pra cama! Digo só por dizer. Pressinto nunca descobrir qual seja a hora de.
Apalpo o interruptor do lado direito da cabeceira. Apaga-se a luz.
Duas pupilas arregalam-se no escuro, tomam conta do meu corpo todo.
Todo eu pupila dilatada, percebo que mergulhar na escuridão não me fará adormecer.
Será preciso cansar as vistas até o ponto de doer-me e perder a força de ficar aceso.
Ler, até a exaustão.
A mão percorre a parede, tateia. Encontro o interruptor de luz e a pressão do dedo muda a luz de cena: tudo é tomado por um branco absurdo.
Violentado pela claridade, fico momentaneamente cego e assombrado, vulnerável.
Tento proteger os olhos da luminescência cerrando as pálpebras, mas também elas são atravessadas.  
Pouco a pouco as sombras, os contornos, as cores.
Depois de adaptado à claridade apanho o livro e começo a leitura.
Página 6, Prefácio.
...
(Porque há uma página em branco antes da folha de rosto?)
Meia hora depois ainda estou na página 6.
Desisto de ler.
Confiro as horas na tela do celular, 2:48 A.M.!
A.M.?
Apago a luz.
Não consigo apagar, digo, pegar no sono.
Tento silenciar os pensamentos, mas fico pensando em como silenciar os pensamentos. Penso em listar coisas pra fazer no dia seguinte. Penso em fazer uma lista das coisas pra não fazer de novo. Lista de coisas pra não fazer nunca. Volto a pensar em como não pensar em nada. Lembro-me das dicas de Osho para a meditação dinâmica. Porque comigo não funciona meditar parado. Enquanto estou afundado na cama tentando dormir, parado, meu pensamento sobrepõe camadas de ideias, pensamentos desconexos, lembranças inventadas. Bordar! Enquanto repasso mentalmente tudo o que não aconteceu no dia anterior, soa, em pensamento, o refrão “eu preciso aprender a só ser”.
Decido não bordar, porque acho que atravessaria a madrugada fazendo isso e pela manhã estaria um trapo. Uma das coisas que passam na minha mente depois que decido abandonar a ideia de bordar é a ideia de que estou bordando. Mentalmente bordo muitos pontos na talagarça usando fio de lã de carneiro. Daí, começo a contar carneiros enquanto bordo, e ouço música, e faço listas e projeto dois ou três futuros hipotéticos para mim mesmo.
Nada funciona, o sono não vem.
Começo a atentar para o silêncio da noite. Descubro que não há silêncio.
Lá fora, miados, o corujar de uma coruja, meu cachorro latindo pra qualquer coisa que passa pela calçada.
Dentro do quarto, a madeira dos móveis estala enquanto respira, e sons de partículas atravessando a parede não me deixa concentrar.
Na minha cabeça passaram-se eras. Amanheceu?! Não, ainda.
3:23, madrugada. Não, manhã. Sei que é de manhã porque um galo desavisado inaugura o dia. Seu canto é vigoroso como o soar de uma sirene de emergência.
Outro som ainda mais irritante começa a tomar conta dos meus pensamentos: um grilo cricrila desesperadamente para atrair uma fêmea às 3:48. O som é tão estridente que tenho a impressão de que ele, o grilo, pressente a morte ou o fim da madrugada.
Outro galo se une ao primeiro, e mais outro em seguida. Descubro, lá pelas 4:53 A.M., que na minha vizinhança há, pelo menos uma dúzia deles.
Levanto da cama. Vou ao banheiro. Bebo água. Ouço o barulho do motor de um ônibus do transporte coletivo que leva os operários da fábrica próximo à minha casa.
São 5:20 da manhã. É inverno. O sol ainda demora sair nessa estação.
Volto pra cama pensando que não fui o único que passei a noite toda acordado: os operários no ônibus que seguiu pela minha rua estão encerrando um turno que começou às 22h.
Deito-me. A cabeça, exaurida de tanta madrugada, pesa um pouco mais sobre o travesseiro.
Aguardo ansiosamente por um instante que virá.
Toca o despertador às 6:45. Nunca estive tão feliz por ouvir o som do alarme que anuncia a obrigação de sair da cama e encontrar as pessoas nas ruas, despertas.  A insônia é uma das piores formas de estar só.


***

Rafael Oliveira, natural de Pirapora, é produtor cultural e coordenador do Clube Literário Tamboril. Com interesse em diferentes formas de expressão artísticas, se arrisca entre o canto, a performance poética e a escrita.


Ilustração: Vinícius Ribeiro (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Faço frete


Preciso destes cacos aqui. Tudo o que você precisa é de um documento em branco e de cortes. O caderno de anotações agora tem capa amarela, o sol se desbotou um pouco mais no caderno, nos cabelos dela. Ouço gritos ao redor, juro que ouço. Mãe, você não pode me culpar por não ouvir. O alto do sapato no corredor da empresa. Viro o rosto, olho. Cancelo o documento novo. Passo a passo.

Hoje compreendi. Há uma cabeça plantada no jardim. Ao redor são flores. Toca um samba sem parar naquela sala. Não entro. Trabalho. O caderno agora tem capa amarela, os cabelos dela. É poeta, articulei. Balança os cabelos, sopra a espuma, é poeta – alguém me diz. Hoje compreendi. Escrever é assistir à minha própria ausência.

Existe uma cúmplice dentro de cada poeta. Uma irmã. Preciso deste ruído aqui. Aquelas sombras ficam onde estão, não mexa. Invoco a multidão de silhuetas. Seu nome é ser cabeça plantada no jardim. Corpo plantado. Poeta corta árvore com navalha.

Os passos me espreitam. Interrompo a derrubada. Preciso de violência. Todo texto é casa, todo corpo é texto. Você é a casa que desaba, eu sou a casa que endureço. Ela é poeta, não mora. Preciso de violência e de uma ilha, não mexa. Dentre as portas abertas, a única porta aberta é a porta do texto. Dentre as estradas. Enrolem, por favor, plástico bolha no texto.


***


Douglas de Oliveira Tomaz, 23 anos, é autor do blog pessoal www.abrigosdevagabundo.blogspot.com.br, foi premiado pelo concurso literário do Clube de Escritores de Ipatinga – MG (Clesi) e possui textos seus publicados pela Revista Jangada e Conhecimento Prático - Literatura. Em 2015, lançou de modo artesanal seu primeiro livro de poemas: Escorre. Atualmente, mora em Belo Horizonte, onde escreve seu primeiro livro de contos.


Ilustração: Vinícius Ribeiro (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)