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domingo, 21 de janeiro de 2018

Mal agradecido



No corpo de criaturas não mais estranhas da quase em estado de demência mente minha, digo: moram linhas abstratas escuras escritas por um salmista démodé. Tenho, no entanto, o bom ou mau senso de que tentar mudar o mundo mesmo quando a realidade se mostra cruel faz a gente ficar com aspecto de coitadinho. Então, é tentar viver até as banalidades extraordinariamente. Fingir que a felicidade, quem sabe, existe.

Neste espaço pequeno há uma infinidade de pássaros. De alguns nem sei os nomes. Quem aparece em maior quantidade são os pardais. Vêm, desde manhã, se esbaldar na ração dos empesteados cães. Ou no arroz cru que Andreia depois de molhar, deixar o pó escorrer, coloca ao sol para secar.

Juritis. Bem-te-vis. Anus. Pombos. Rolinhas pardas. Rolinhas pedreses. Tico-ticos.  Canários. Pássaros pretos. Maritacas. Cabecinhas-pretas. Sabiás. Pica-paus. Até araras temporãs aparecem. Uma vez vi no alto do abacateiro um jacu. Alguém me disse que jacu não é pássaro, é uma galinha capaz de voar. Senti, ainda, a impressão de ter visto garças, gaivotas, martim-pescador e marrecos d’água neste lote. Trem de causar inveja: ter o Velho Chico praticamente dentro dos muros que rodeiam a casa deste pobre mortal.

Insisto em achar que tais aves surgem de seus cantos de mato por causa da variedade farta de frutos nascidos em meu quintal: abacate, tangerina, umbu, seriguela, goiaba, caju, tamarindo, acerola, manga, mamão, jabuticaba.

Às vezes a solidão ousa me oprimir aqui. Desequilíbrio de não ter a coragem de deixar a cabeça nas nuvens e tirar os sapatos para sentir o chão com maior plenitude.

A natureza a girar em torno de mim como a Terra em torno do sol.

Pecado mortal de sentir infelicidade com tanta superfície bela onde os olhos pousarem.


***


Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro-MG há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015) e Piolhos (2016), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).

Ilustração: Vinícius Ribeiro. Começou a desenhar desde a mais tenra idade e nunca mais parou. Atualmente, estuda Artes Visuais na Universidade Estadual de Montes Claros. Colabora periodicamente como ilustrador para O Salto, além de ser autor do blog pessoal Pensamento Ilustrado (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)

domingo, 1 de outubro de 2017

Xará



Ser um garoto com ar de gasto desde os primórdios da infância tem lá ao menos uma vantagem: passar despercebido, por exemplo. As pessoas o têm como uma face vista e revista vezes sem conta, mesmo à primeira vista.

Jonas Júnior Silva. O nome da pessoa.

Uma criaturinha que moldava sua personalidade (se é que tinha alguma) ao ritmo da monotonia. Jonas Júnior Silva tivera tataravô, bisavô, avô, pai e tios com o nome de Jonas. Jonas tinha com todos seus parentes uma semelhança significativa. Ele era uma pessoa transparente demais. Tinha cicatrizado à flor da alma (se é que tinha alguma) o receio de guardar segredos. E não é segredo de ninguém que uma pessoa para ser considerada interessante precisa acumular alguns segredos.

Jonas Júnior Silva era chamado pelos amigos de infância de Xará. O epíteto fossilizou, tomou forma de perenidade. Nada de mal. Xará é aquele que tem o mesmo nome. Nenhuma nuance a mais a acrescentar ao livro aberto dessa vida em voga. Uma vida besta, diria Drumonnd em um de seus célebres poemas.

Em referência sonora à palavra célebre, Xará tinha três cães. Cruzamento de pitbull com vira-lata. Os três cães tinham o mesmo nome: Cérebro, que, por sua vez, aludia ao nome mítico de Cérbero, o cão de três cabeças, guardião do portal do inferno.

A esquisitice do menino não parava por aí. Sua coleção de minhocas era outro caso. Ele não deixava as minhocas passarem de sete. Quando tal número era ultrapassado com o surgimento de novos comedores de lama, ele separava os maiores, os aparentemente mais saudáveis, excluía, assim, os mais fracos, que sacrificava aos peixes de um aquário, onde criava pirambebas, pequenos peixes da espécie das piranhas, em ato bastante cerimonial.

– Um projeto de Hidra –, definia, assim, Jonas, a sua coleção de minhocas. Complementava que os bichos também raciocinam, mas que o uso acentuado do lado direito, o criativo, e o do lado esquerdo, o racional, é predicado dos humanos. Ao ouvi-lo assim falar, seus pais achavam que o filho tinha miolos de minhoca.

Jonas, ou Xará, tinha dificuldade de recordar nomes e muita facilidade de esquecê-los. Ele ainda sofria, solitário, uma crise de identidade que insistentemente negava.

Porém, em seu caderno de apontamentos, era comum (o que não era comum em um menino que negava ser incomum o tempo todo?) serem encontradas frases de teor cáustico, recicladas de leituras feitas ao longo de seu tempo, em um caderno de apontamentos. Exemplos:


1 – A existência é um osso antigo que ainda verte sangue virgem nas mãos de um mendigo imerso em ilusão.

2 – Pé de rosa nasce num jardim mal cuidado, onde, de forma furtiva, feto abortado foi enterrado.

3 – Cheiro de peixe podre. Mosca excitada, a ponto de copular com lâmpada apagada. Lâmpada apagada, acossada. Tímpanos zumbem. Verbo crescer em forma de gerúndio: CRESCENDO!

4 – Quem pariu a humanidade foi uma pedra.


            E por aí ia. Tudo documentado, visto e revisto, desde a capa à contracapa.



***


Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro-MG há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015) e Piolhos (2016), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).


Ilustração: Vinícius Ribeiro. Começou a desenhar desde a mais tenra idade e nunca mais parou. Atualmente, estuda Artes Visuais na Universidade Estadual de Montes Claros. Colabora periodicamente como ilustrador para O Salto, além de ser autor do blog pessoal Pensamento Ilustrado (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Cantiga em prosa



Instantes de ânsia extrema.

Você o tempo todo no pensamento, a preencher horas de ação e de ócio.

Seu beijo. Seu cheiro. Seu corpo abraçado por mim com a loucura de quem queria ver o tempo parar. O pânico de não conseguir negar que a impossibilidade de eternizar nossos momentos fosse possível.

Era você. Anjo às vezes. Às vezes um demônio num corpo de luxo. A me obrigar a congelar o calor torturante de meus genitais, apalpá-los, apertá-los, como se assim diminuísse a gula de possuir você inteiramente.

Estamos diante do portão de sua casa, 23h:30min. Ou diante do portão de meus pensamentos? Você usa uma camiseta que tem uma foto da Mary Poppins estampada, sem sutiã por baixo. Você veste uma minissaia. Beijo sua boca. Mordisco seus lábios. Esfrego-me em seu corpo. Você chupa minha língua com volúpia. Toco seus seios. Minhas mãos passeiam pela sua bunda. Você me empurra. Pede para eu parar.

Era você. O nome que eu sussurrava enquanto descia de montes isolados para tocar punheta, sentir-me mais vazio depois de gozar.

Tanta laranja madura, tanto limão pelo chão!

Era você que fazia com que eu achasse que ir longe demais fosse perto. Era você que fazia e ainda faz meu coração bater de forma acelerada e dolorosa.

– Melhor acabarmos com isso.

Você acabou comigo.

– Morrer de amor não mata.

– Não? E o louva-a-deus?

– Eu disse morrer de amor. Não disse morrer de amar.

Tanto sangue derramado dentro do meu coração!



***


Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015) e Piolhos (2016), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).


Vinícius Ribeiro, artista. Começou a desenhar desde a mais tenra idade e nunca mais parou. Atualmente, estuda Artes Visuais na Universidade Estadual de Montes Claros. Colabora periodicamente como ilustrador para O Salto, além de ser autor do blog pessoal Pensamento Ilustrado (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Seu Joaquim



Acho que os que perdem a crença no amor, mesmo assim, acreditam na perenidade da esperança, guardam fagulhas de juventude na fonte serena da alma.

Diacho de eu perder a crença e, mesmo assim, achar que, de cova, tumba, túmulo e lápide, palavras ecoam no cerne destes pensamentos rasos.

Meu cérebro encontra imagens dele agora.

Um recuo no reino de tais imagens.

Como se memórias fossem as mãos de um Cronos subjugado ou os ponteiros de um relógio ditador que de modo inesperado se coloca a meu bel-prazer.

Agora, uma palavra feia: moribundo. Outra: catacumba. Caixão. Velório. Enterro. 
Agora, as palavras: cadeira e muletas. Outras: cozinha, quarto, sala, soleira.

Quintal, agora não. Que pode se tornar pranto, que pode se tornar choro.

Quando o via ali, eu costumava parar e ouvi-lo. O brilho do olhar em recusa constante à crueldade de tons vermelhos insistentes em tingir a íris e todo o corpo dos olhos com a arte da dor.

Não culpava a vida.

– Deus sabe o que faz.

Agora, ele capina o quintal, rastela folhas, molha plantas. Carinho pelas plantas é imenso. Carinho talvez amor. Diz-se contente com minha presença. Diz que saber preservar amizades é um dos maiores dons de poucos seres humanos, não só dos cães. Agora, pega um saco plástico, colhe algumas carambolas, simultaneamente olha para o céu. Agora, céu sem nuvens de chuva. Decerto, seu olhar é de agradecimento a anjos que quase ninguém vê.  Há piadas mordazes quanto ao fato de as galinhas olharem para o céu ao beberem água. Se repararmos em nosso movimento ao nos saciarmos, notaremos que se levamos o copo aos lábios, a cabeça se inclina levemente para o alto. Agora, antes de me entregar a sacola com os frutos, ele me diz que toda estação tem seus frutos. Coisa boa de existir Deus.

– Alimentar o corpo diverte o espírito. Leve para você se distrair.

Agora, algumas araras fazem orgia no alto do coqueiro e no raro pé de buriti.

– Arara! Arara! Arara! Arara!

Sua voz denota a debilidade trazida pelos anos, mas capto ondas de música no ar.

– Arara! Arara! Arara! Arara!

Repercussão do topo das árvores. Sua boa causa produz efeito.

– Bichos são obras de Deus. Gatos. Cachorros. Galinhas. Porcos. Bois. Cavalos. Também os bichos do mato que vivem na Terra, no ar e na água.

Agora, os peixes me lembram de um dia de pescaria.

– Bom pescar é apoitado, no barco. Pegar Piau Três-Pintas é bom, mas o melhor é o verdadeiro, o Dourado da goela grande, a Matrinchã, o Mandi Amarelo.

Sua empolgação inicial substituída por uma mudez concentrada, paciente. 

Às vezes, o sol cáustico castigava nossa pele. Ânsia sem sufoco. Às vezes, era a noite. Paisagem bucólica. Dois homens a pescar. O barco sob a lua na superfície mais calma das águas do rio São Francisco.

Sua fisgada era certeira. Pegava muitos peixes grandes, mas proibia-se de qualquer entusiasmo que pudesse ser confundido com arrogância. Dissimulava o riso, quando eu que não tinha o talento de pescador me equivocava com algum puxão forte e fisgava alguma Piabinha à toa.

– Você pegou pouco.

Era o que dizia, olhando para minha enfieira de Piabas, Piaus Jejos e Mandis Brancos. Pedia para eu escolher dois dos peixes maiores que tinha fisgado.

– Dá procê fazer um molho.

Depois.

Agora, as carambolas. Agora, as araras. Regador. Rastelo. Enxada.

Agora, hospital. Médico. Consulta. Diabetes. Câncer diagnosticado. Amputação cirúrgica.

Agora, cadeira-de-rodas, muletas.

Agora, brilho esmaecido de olhar sereno em luta contra a crueldade de tons vermelhos insistentes em tingir a íris e todo o corpo dos olhos com a arte da dor.

– Não deixe de me visitar, menino.

Uma lágrima se negando a ser derramada. Meus olhos um pouco molhados.

– Estou aleijado, mas não estou morto.

Agora, diz que saber preservar amizades é um dos maiores dons de poucos seres humanos, não só dos cães.

Agora, a feia palavra: moribundo.

Agora, um quadro na parede da sala.

Agora, uma voz que soa lá de além, voz de silêncio, voz de abnegação.

– Deus sabe o que faz.

Agora, saudade dói, dói, dói.


***


Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015) e Piolhos (2016), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).


Vinícius Ribeiro, artista. Começou a desenhar desde a mais tenra idade e nunca mais parou. Atualmente, estuda Artes Visuais na Universidade Estadual de Montes Claros. Colabora periodicamente como ilustrador para O Salto, além de ser autor do blog pessoal Pensamento Ilustrado (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Saruês


Às vezes tenho pesadelos com esse lugar masmorra e morro de medo. Sem desculpas, aliteração literal.

Ela dizia se chamar Ane. Assim com um ene só, apesar de que fosse loira e lembrasse ária alemã. A volta de Deus aguardada. A pele branca de Ane sobre a minha com tons de sombra. Arte barroca. Percebi que ela tinha um tesão maior por cima, como se cavalgasse um fauno. Digo um tesão e, há poucos instantes, no Sorriso do Lagarto, do João Ubaldo Ribeiro, li uma tesão.

Um pouco além do começo, acho que ela se sente bem melhor em pose de domínio.

Sinto nojo de um lance daquele dia: a ratazana que caiu nas minhas costas quando fazíamos sexo. A ratazana não, acho que era um rato gigante, na parede do quarto, antes de dormirmos; depois de Ane me dizer que faria de graça se da próxima vez eu levasse alguma bebida ou mesmo outra droga ilícita pro programa. Tinha de ser escondido, pois o leão-de-chácara tinha chicote de feitor e olhar de lince cego de ódio. Toda vez que fizemos sexo foi sem camisinha. Ela teve um filho. Às vezes imagino que é meu. Como ela não me disse nada, fiquei quieto. Histórias de minha juventude em Curvelo!

Quanto tempo se passou!

Esses dias, eu tive a impressão de ver aquela ratazana, digo, rato gigante, na madeira central da casa, já em Buritizeiro. De repente, ao triplo, nos caibros do telhado. Faziam ruídos, como se gemessem, gemidos raivosos. Os olhos malévolos, se de perfil, de panda se frente a frente, os dentes serrilhados.

Peguei uma escada, coloquei-a encostada na parede, sua altura dava quase no teto. Comecei a cutucá-los com o cabo de um rodo. Um saiu. Outro saiu. Um ficou.

Temi que me pulasse no pescoço e afundasse os dentes serrilhados em plena artéria.

Era covarde; eu também; de coragem, eu só tinha ostentação. Peguei uma mangueira, encaixei na torneira no quintal, liguei a água, levei a torneira para dentro de casa, esguichei sobre o ser esquisito. Ele começou a expelir um odor que eu nunca sentira antes, poderia dizer que, de gambá, mas, até então, não tenho certeza.

O mau cheiro fez brotar em mim um sentimento de raiva, de impotência. Aproximei mais o jato de água, a casa ficava toda molhada, o pelo do bicho encharcava-se. Quanto mais eu o molhava, mais ele gemia, um gemido, que soava como ameaça, como o de um ser temeroso de ter seu espaço invadido. O embate teve duração até o bicho sair por uma fresta do teto após remover uma telha.

Ouvi muitos latidos de meus cachorros e sons de contenda no quintal, naquela noite, antes de dormir.

No outro dia, achei os três ratos gigantes estirados no chão. Tinham sido mortos pelos cachorros, então vigilantes, como se as criaturas imóveis pudessem ressuscitar a qualquer momento.


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Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).


Vinícius Ribeiro, artista. Começou a desenhar desde a mais tenra idade e nunca mais parou. Atualmente, estuda Artes Visuais na Universidade Estadual de Montes Claros. Colabora periodicamente como ilustrador para O Salto, além de ser autor do blog pessoal Pensamento Ilustrado (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Um dos últimos dodôs



Meus pés pisavam folhas secas de eucalipto. Farfalhos e estalidos de gravetos se faziam ouvir. Vários carrapatos, alguns pequenos e outros relativamente grandes subiam pelas minhas pernas, invadiam partes íntimas, picavam, principalmente a região escrutina que coçava, coçava muito. Meu irmão me acompanhava nessa empreitada. Catávamos lenha para acender a fogueira na fornalha, cozinhar o feijão, economizar o gás e diminuir a tristeza noturna do frio julho.

Era proibido catar lenha naqueles pastos. Às vezes o ronda nos surpreendia, obrigava-nos a correr, de maneira desabalada, os feixes nos ombros, passar debaixo das cercas de arame farpado, às vezes nos machucávamos nas pontas enferrujadas do arame. Carecíamos de álcool para passar nas feridas, livrar-nos no mínimo da cisma do tétano. Quase nunca havia.

Não sei por que, meu pai me apelidou de Dodô. Talvez por esta cara de sonso e aludindo ao personagem de Alice no País das Maravilhas, cara que fazia alguns me chamarem de Sonson. Meu irmão, o Henrique, era apelidado de Ique. Lembra soluço. Tais apelidos, creio, pegaram mais porque meu pai, todos os meses, na véspera de pagamento, costumava nos presentear com carrinhos de brinquedo, de plástico. Para mim uma Bascola, para meu irmão um Volks.

O velho tinha uma sanfona antiga, vermelha, pequena, oito baixos, da Hering. Tinha a mania de cantar de uma maneira bem peculiar, enquanto tocava:

- Vôca do Ique, Bascola do Dodô. Vôca do Ique, Bascola do Dodô.

Às vezes mudava a toada, o que para mim era um alívio, já que, a molecada da Rua J. B. D. costumava ouvir seu Afonso tocar, ao passar na rua, decorar o som para que nós pudéssemos lhes servir de chacota. Tenho o estopim bem curto, por isso eu sofria mais.

Outras toadas clássicas de meu pai eram:

- Para, Pedro! Pedro, para. Ou:

- Dona Mariquinha foi tomar banho na gamela, a água estava quente e sapecou a bunda dela.

Crescemos com o sonho de comprar um carro. Não consegui o feito, que acabou sendo realizado por meu irmão.

Não sabíamos dirigir. No dia da compra, bebemos muito para comemorar, não um Volks, sim um Opala amarelo. Meu irmão emprestou o carro a um primo que sabia dirigir, para teste. O último saiu e ficamos sentados a uma mesa, próximos ao balcão do bar, onde bebíamos.

Esquecidos de que havíamos emprestado o carro, saímos do bar, bebíssimos. Não vimos o veículo, ficamos desesperados, a sensação de termos sido roubados. Procuramos pela região do bar, nada achamos, chamamos a polícia, fizemos B. O. Por fim, fomos para casa.

Apesar da tristeza, foi fácil dormir, mergulhados naquele mundo de águas.

Pela manhã, com a maior cara de ressaca, meu irmão foi contar à sua esposa que o carro havia sido roubado, a ponto de dar vazão a um pranto. Ela lhe disse:

- Então, eu estou variando. Que Opala amarelo é aquele que seu primo trouxe e guardou na garagem?

Ele:

- Eu já sabia. Estava só brincando.

Apareci na casa de Henrique, mais tarde, surpreendi-me, ao vê-lo, como uma criança; simulava dirigir, buzinava, fazia ruídos de automóvel com a boca, à maneira que brincávamos em pequenos.

- Entre aqui, cara.

Entrei no Opala. Ele pegou uma fita e colocou para tocar uma música da banda alemã: Accept.  Metal Heart.

Ficamos ali, umas longas horas.

Agora, imagino como era fácil, no tempo mais comum de o sonho fluir, andar de carro, mesmo sem saber dirigir, viajar pelo mundo inteiro, sem sair do lugar.


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Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).


Ilustrações: Vinícius Ribeiro (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)

terça-feira, 19 de julho de 2016

A figueira em que Jesus rogou praga



O pequeno calango sobe pelo tronco do pé de abacate, vacila; desce ao chão batido da entrada do quintal. Chega quase próximo à cadela, que o observa, finge não estar em ritmo de emboscada; porém, até respira, compassadamente. Seu olhar furtivo não escapole da lagartixa do mato. O calango faz o mesmo jogo de subir e descer da árvore e se aproximar da cadela. Ela permanece aparentemente impassível.

Observo este jogo e nele me vejo. A ladeira da vida. Meus artifícios. Meus despropósitos. Planos que chego a estar próximo de concretizar, que abandono; mormente, arrependido, mas de forma abrupta.

Se os rastejantes tivessem asas, decerto devorariam todos os pássaros. Deus não lhes dá. Dizem que Deus dá outras coisas. Entre elas, o ânimo, a alma.

Então, por que ao desistir, ao me sentir derrotado pelos descaminhos da subsistência, torno-me este recipiente insípido, vazio? E aí, Deus, onde estás que não respondes?

O pior é tal fato acontecer, mesmo depois de meu senso de presunção sofrer um lapso, de eu pensar ter concluído os Doze Trabalhos de Hércules.

É, decerto, a lupa de meus semelhantes focada em meus esforços. De repente, uma impressão alheia, uma frase de sutil desdém: Qualquer um pode ser gênio; basta 1% de inspiração e 99% de transpiração. Pica-se, aqui, a caveira alva de Thomas Edison com alfinetes enferrujados.

Levo as mãos ao rosto, cubro-o, choro. Procedimento padrão, às ocultas, dos últimos dias. Choro, de maneira compulsiva, depois de perceber que meus diamantes atirados na lama para porcos pisotearem são, na verdade, bijuteria; pior, vidro ordinário. Simples, assim, vê-los transformados em cacos, em pó de si mesmos.  Minha impotência é sombreada pelas cores do arco-íris de um mosaico.

Vento, poeira, areia, nuvem, chuva e demais mensageiros efêmeros da natureza colocam à minha disposição um mistério. O sol é muitíssimo claro. O tempo me pede para ter esperanças. Nos ares há sangue. Nos ares há chamas. Nos ares há lama.



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Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).


Ilustrações: Vinícius Ribeiro (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)

domingo, 19 de junho de 2016

Uma espécie de sonho



Dizem que acontece mais com quem tem problemas de insônia. Momentos que parecem ser verdadeiros. Eternizam-se, em poucos minutos. Beliscar-me, durante tais, não é fácil.

Não sei como fui aparecer naquele poço quase seco. Apenas um filete bem manso a correr de acordo com sua índole, em direção a uma ribanceira. Não formava cachoeira. Nem queda-d’água.

Vi a casca branca da cobra semienterrada na lama. De súbito, não era mais uma casca. Um movimento infinitamente leve ocorreu. Olhos apagados se abriam: uma cobra branca com faixa de meio metro de comprimento. O medo me paralisava, mas, de forma sutil, consegui desviar meu olhar dos dela, hipnóticos. Recuei.

Daria para correr, mesmo que as pernas tremessem, exageradamente.

E, eis que, sob a crosta de lama, por onde corria o filete de água cristalina, aparece outra cobra muito maior, porém, parecida com a primeira.

Uma naja? Boipeba? Surucucu? Sucuri? Qualquer semelhança com algum filme de Indiana Jones teria sido mera coincidência.

Ela começou a se erguer, toda pescoço, em minha direção, cheguei a crer, até, que tivesse pernas e pés e asas. Depois, escorregou por entre pedras lodosas, mergulhou na ribanceira, desapareceu, deixando, atrás de si, a pouca água transformada em lama.

Pensei que fosse uma artimanha do animal para me pegar pelos flancos. Aquilo, penso, poderia engolir um hipopótamo. Pensei, ainda, em vislumbrar vestígios da cobra menor, mas ela havia sumido.

Comecei a correr. Atolava-me, de forma tola, em meus movimentos temerosos.

Saí da lama e esbarrei num trilho, que apareceu do nada. Ao lado do trilho, havia uma floresta gigantesca de pés de assa-peixe. Por que assa-peixe? Não havia tempo para respostas às indagações contidas em meu monólogo. Em verdade, em verdade, as coisas são o que estão por uma questão de falta de alternativa. Uma espécie de charrete guiada por um homem, de chapéu, um homem do qual eu podia ver apenas um vulto escuro, surgia.

Eu tentava gritar, mas a minha garganta não emitia nenhum som. Percebi, também, que eu ia em direção da charrete e ela vinha em minha direção, mas não conseguíamos nos aproximar.

Imensidão de arrepios de pavor e calafrios. A qualquer momento, a cobra gigante poderia me tocaiar, surgir de entre a floresta de pés de assa-peixe.

- Pai! Pai!

Acordei, com o chamado de Mariana.

- Nossa, pai, você estava agitado demais; rolava na cama, falava enquanto dormia.

Mariana tocou minha testa.

- Está quentão, pai, deve ser febre muito alta. Tem que tomar Dipirona. Vou pegar o termômetro. Tem de consultar.

Contei este sonho a um senhor de idade, meu conhecido, que se mete a médium, mas só tem fama de ter feito muitos despachos na vida e curado quebranto, vulgo Zé Macumba. Ele me orientou, com ar onisciente:

- Fizeram um trabalho para você, professorzinho.

Acrescentou, ainda, que iria jogar um passe, com duas cobras e, outro, com cobra e burro, e outro com cobra e veado no jogo-do-bicho.

Fiquei desconfiado que os burro e veado ao qual Zé Macumba se referia eram eu. Desconsiderei. Cocei as picadas de pulga atrás da orelha. Serenei.


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Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).


Ilustrações: Vinícius Ribeiro (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)