É comum, no interior de Minas Gerais, o ato de ingerir filhotes de cobra
quando se está apaixonado. O jovem casal deveria engolir uma cobra, do tamanho
de uma minhoca, no ápice de sua paixão. O perigo de o animal se revoltar já na
boca do apaixonado era o que instigava o menino e a menina a cometer a loucura;
nada era perigoso demais aos amantes. Acontece que, para os habitantes dessa
cidade, este ato era bastante simbólico: a cobra representava o incerto,
a vida e o traiçoeiro.
Com uma linha o garoto amarrava a boca serrilhada do animal e entregava
à garota, que sempre deveria ingerir primeiro. O ritual obrigava as mulheres
engolir o réptil primeiro, pois que das complicações que poderiam vir de uma
mordida, seu corpo era milenarmente preparado a lidar com a dor. Ansiosa por
algo que nunca tinha feito antes, a jovem segurou a cobra pela pontinha do rabo
e, fechando os olhinhos, jogou-a esôfago adentro. O rapaz foi o próximo;
relutante, já não tinha certeza se queria fazer aquilo – rapazes nunca têm.
Uma vez no estômago, duas coisas podem acontecer à cobra: morrer,
prematura, pelo suco gástrico de seu portador, ou resistir a este líquido,
encouraçando sua pele fria e fazendo-se forte e resistente. O filhote que o
garoto engolira morreu cedo e logo a brincadeira de beijos e carinhos se tornou
banal e rotineira para ele. Já o da garota, este resistiu às provas biológicas
de seu corpo, quase numa obstinada necessidade de manter-se vivo.
O maior sofrimento da menina não foi o de ser deixada, mas o da
necessidade de lidar com um ser que crescia a cada dia. Quando incomodada, a
cobra picava a carne da garota e emitia um silvo alto que se fazia ouvir por
quem se aproximava. O réptil, é certo, um dia morreria, e as feridas deixadas
por ela se cicatrizariam pela habilidade lenta e gradual do corpo humano de se
curar; já a menina... ninguém morre com uma cobra na barriga.
***
Rafael
Ornelas tem vinte e dois anos e é estudante de Letras. Mora em Belo Horizonte,
mas cresceu em Guanhães, interior de Minas Gerais.
Ilustração:
Vinícius Ribeiro (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)
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