Entrevistar
Adelinho foi muito fácil. A começar pela permissão íntima de se usar o nome no
diminutivo; fácil também pelo ambiente confortável de sua casa, pelo vento de
março que agitava as árvores da rua e abraçava nossa conversa, pela
generosidade com que ele interrompia a entrevista para oferecer suco, cerveja,
vinho, qualquer carinho que o valha. Sobretudo fácil, porque todas as perguntas
foram respondidas antes mesmo de terem sido feitas. Bastava ouvir. E ouvir,
quando o emissor é um exímio contador de histórias, que prolonga ou encurta
palavras no momento certo, aumenta ou diminui a entonação da voz no intuito de
ênfase, pausa, sabe o peso que cada palavra tem, enfim, ouvir nesse caso é
fácil, muito fácil.
Adelinho mora numa casa-ateliê de
dois andares, quintal vasto, lugar onde costura, cria, recebe visitas e dança
sozinho pelas madrugadas, segundo diz. Lá, recebeu a mim e a Davi para uma
prosa caleidoscópica em que início, meio e término se confundiam, assim como
nós três. Em sua fala, a todo momento procurava ligações entre nossas três
personalidades, num ato tanto de quem se habituou a receber visita e cuida de
incluí-la na conversa cotidiana, quanto de artista que recolhe diferentes
tecidos espalhados pela casa – e os costura. Adelinho é costureiro e aquela
tarde foi de estabelecer elos.
-
Gosto muito do processo de criação no vestir. Eu não trabalho com egoísmos
pessoais. O vestir é muito pelo contrário, a pessoa coloca muito mais para fora
o que ela realmente é. Tem gente que pensa que vestir é fantasia, e não é. O
dia em que eu tô mal, eu tô de calça comprida, uma camisa, assim, lisa, bege...
Pode saber, não tá bem – gargalha Adelinho, que naquele dia estava todo de
amarelo, qual picolé de pequi.
Formado em Belas Artes e em
Decoração, aprendeu a costurar observando as costureiras de uma fábrica para a
qual foi chamado para tingir tecidos, em Belo Horizonte, após um período
trabalhando, meio a contragosto, como decorador: Sabe quando você se sente em casa? Aquela coisa de manchar tecido e a
pintura virar roupa, tomar vida e ir para a rua. Eu acho que o que me fascinou
foi isso – abaixa o tom, como quem chega na pedra de uma certeza e a
reverencia –, foi isso, sair na rua e ver
o tecido que eu pintei andando pela cidade.
A
identificação com os Parangolés, de
Hélio Oiticica, que na década de 60 dizia que a “arte deve ser vestida”, não é
coincidência, mas influência assumida:
- Quando uma professora de moda
perguntou o que era o parangolé para mim, respondi: olha, eu vivo isso. Nunca
fiz quadro para ficar estático na parede. Eu faço o tecido pintado, bordado e
ele vai embora. Ele tem vida própria.
Nildo da Mangueira, com
Parangolé, 1964
Interrupção
para contar outra história
Itzik morou em Pirapora em 1979, ano de
enchente, ocasião em que conheceu e se tornou amigo de Adelinho. Judeu, olhos
claros, hoje de barba longa e dreads, mora em Jerusalém. Pediu a seu
velho amigo uma camiseta colorida bordada. Camiseta bordada? respondeu
Adelinho espantado. Logo você que só usa marrom? O costureiro, sempre
muito atento às relações entre cores e subjetividades, diz que o amigo, “hippie
real e autêntico” que viajou o mundo inteiro e desejava quando moço falar todas
as línguas, nunca foi de usar roupas coloridas. Já se cansou de tentar
convencê-lo a usar lenços, tintas. Hoje, após o pedido inesperado, contenta-se
por bordar uma típica paisagem piraporense numa camiseta branca para o amigo.
Itzik receberá Pirapora bordada no peito na capital de Israel, onde ensina às
pessoas a respirar. Ninguém sabe respirar, almoçamos correndo, fazemos tudo
com pressa – justifica Adelinho,
defendendo a relevância do trabalho do amigo. Mas, pessoalmente, entre um
assunto e outro não respira. Emenda a conversa.
Após ter trabalhado numa empresa de
decoração e numa confecção em Belo Horizonte, Adélio cansou-se do ofício. Seu
contato com artistas da capital mineira o fez atentar para o sentido artístico
que latejava dentro de si. Eu estava cansado de decoração. Larguei tudo e
voltei para Pirapora. Eu queria liberdade, queria começar minha vida de
artista, conta. Interessante notar que essa pulsão que o fez buscar a liberdade
foi a mesma que o fez buscar a arte, como se fossem os dois um processo
só, ou como se fossem sinônimas essas duas palavras.
- Voltei para Pirapora, trabalhei por
uns dois anos com uma, duas máquinas de costura, mas, em um momento percebi que
eu precisava melhorar meus instrumentos de trabalho. Por isso, morei em
Brasília por quatro meses, onde trabalhei para conseguir dinheiro e então
comprar mais máquinas, investir em mim mesmo. Consegui, retornei à Pirapora,
abri uma confecção e me tornei o costureiro dos doidão. Sabe esse
negócio de customização que falam hoje? Pois é, eu já o fazia no início da
década de 90. Tingia, remendava, colocava uma estrela aqui, um brilho acolá...
– ri, enquanto relembra.
E, antes de verbalizarmos pergunta já
formulada, responde que sempre contou com apoio dentro de casa. Inclusive, em
relação a sua sexualidade. Lembra que os amigos conservadores de seu pai
chegavam neste para compartilhar um constrangimento: olha, acho que seu
filho é ó… E Adélio pai, com uma mentalidade avançada para seu tempo, ouvia
os amigos, mas em relação ao filho nunca foi de poda. Pelo contrário,
conta Adelinho, ele e minha mãe sempre me deram corda para ser livre.
- E esse apoio foi
fantástico na minha vida. Imagine, eu saí daqui para estudar em BH, trabalhei
lá, estava bem sucedido, ganhando dinheiro e, de repente, volto sem nenhum tostão
no bolso e a primeira coisa que faço quando chego é abrir um bar numa ilha do
rio São Francisco durante a Festa do Sol. Inclusive, eu servia amendoim com o
sal numa tampinha e o povo falava que eu servia cocaína. Imagina? Só se eu
estivesse rico para servir cocaína no meio do rio – gargalha. Mas o que eu
quero dizer é que isso tudo era motivo suficiente para meus pais quebrarem o
pau comigo, só que não foi assim. Muito pelo contrário.
Interrupção
para contar outra nova história
Além desse botequim existente durante a
Festa do Sol, Adelinho também foi sócio de outro bar, Floridita, junto com um
casal de amigos franceses, Christophe e Françoise. O nome do estabelecimento
faz referência ao histórico bar homônimo em Havana, Cuba, fundado em 1817,
famoso internacionalmente pelo daquiri e por ter sido frequentado pelo
escritor norte-americano Ernest Hemingway. O Floridita piraporense não ficou
famoso por ter um grande escritor como cliente assíduo, nem por servir cocaína
como tira-gosto, mas estava na boca do povo devido aos boatos de que Adelinho
se relacionava sexualmente com o casal de amigos. E era verdade?
pergunto. Não, responde. Mas beijava a boca dos dois. Não passava
disso.
Davi pintou uma aquarela para dar a Adelinho de presente
A conversa seguiu fluida, pouco
organizada, pouco óbvia. Em vários momentos nossas três histórias – minha, de
Adelinho e de Davi – se confundiram e não sei se por mérito da energia trocada,
ou da capacidade criativa do entrevistado que, ao contar sua própria história,
também nos costurava a ela. Somos retalhos ou tecidos inteiros. Roupa é
pessoa, Adelinho sintetiza.
Por fim, ou no meio, ou no começo,
conversamos ainda sobre a recente movimentação artística pela qual a cidade
está passando. Grupos autônomos de literatura, artes plásticas, teatro,
capoeira, dança e outras manifestações articulam-se, fortalecem-se mutuamente,
resgatando a cultura barranqueira, ou reinventando-a, tirando a poeira que
pairou sobre o município durante longos anos. E, sobre o assunto, nós três
convergimos no ponto de que não é mais tempo de ficarmos somente exaltando o
passado, num saudosismo paralisante, mas de nos perguntarmos: o que podemos
fazer para melhorar a produção cultural piraporense hoje, agora? E ficamos
felizes em já encontrarmos várias respostas a essa pergunta acontecendo
concretamente e outras ainda sendo pensadas todos os dias, pulsantes, latentes.
Pirapora vive, concluo. E essa conclusão é minha, mas acho que
partilharíamos o ponto de vista se esta afirmativa tivesse sido lançada naquela
tarde de março, àqueles ventos que balançavam as árvores e faziam tudo parecer
mais colorido, profundo e fácil, sobretudo fácil.
***
Davi,
18, é artista plástico, autor da exposição Partos, ocorrida em Pirapora,
2014, e atualmente reside em Belo Horizonte. Tumblr:
Douglas
de Oliveira Tomaz, 22, é escritor, educador, lançou artesanalmente o livro de
poemas Escorre, e atualmente reside em Pirapora. Blog:
www.abrigosdevagabundo.blogspot.com.br