Você
se lembra de quando fui ao curso de iniciação teatral pela segunda vez? Da
primeira, você não estava, por isso não achei muita graça. Senti-me um
estúpido, no momento em que a professora testava meu grau de timidez, em
exercícios de liberação, enquanto eu procurava negar o óbvio com atitudes,
falas embargadas, cacoetes, que ao contrário de me defenderem, denunciavam o
garoto avermelhado e minha incapacidade de olhar bem em olhos alheios.
Certo momento da segunda aula, foram tirados alguns livros de poemas da estante da biblioteca do lugar. Uns Drummond com Bandeira, Vinícius, Pessoa, Cecília e Clarice. “Os poetas são chamados pelo sobrenome, as poetas, não.” Você disse isso para me provocar, porém, eu gostava de sua maneira de se posicionar a respeito de todos os temas e não retruquei. Na ocasião, ganhei pontos seus ao lhe apresentar o Eu, do Augusto dos Anjos e dois livros também em versos do Lúcio Cardoso, livros dos quais não lembro os nomes.
Cada
um dos participantes do curso era obrigado a ler ao menos uma estrofe em voz
alta. Em particular, notei o quanto você lia vários textos com muito gosto. Eu
saboreava encantado sua voz e sua maneira peculiares de declamar. Em tais
momentos, eu a fitava, disfarçadamente, com rubor então indefinível. Minha mão
tremia e suava. Nunca entendi quase nada disso. Ao trocarmos mais palavras,
disse-lhe ter gostado muito do momento de leitura compartilhada, ainda mais que
fora leitura de poesia. Que de teatro não gostava muito. “Por que você não gosta
de teatro?” Na verdade, eu não soube responder direito à pergunta. O mais
próximo de uma explicação que dei a você, em tom de mea-culpa, foi que não
conhecia teatro direito. Ou porque aprendera com alguém, de quem não lembro o
nome, que Shakespeare era coisa de gente fresca e metida à sabichona. Você
sorriu esquisito, como se quisesse me estrangular. E acrescentei que quando não
conhecemos algo, é como pisar, na melhor e/ou na pior das hipóteses, em ovos ou
em minas. “Mas pisamos em Minas o tempo todo, não? Libertas quae sera tamem!” Você brincava de se fazer de
desentendida.
“Eu
gosto demais é de ler e de escrever poesias.” “É mesmo? Mostre pra mim um dia
desses?” Na terceira aula, eu lhe mostrei minha caderneta, cheia de versos
toscos, versos nos quais não faltava, porém, a ternura apaixonada de quem
adentrava o reino insólito das palavras. Ao ir para casa com meus poemas, você
levou emprestado um pedaço considerável da minha alma. Um tempo depois, houve a
devolução. Engraçado, que ao receber de volta o subjetivo objeto, tive a
sensação de um anel de vidro que se quebrasse, porém fiquei arrepiado quando
você me disse ter adorado meus versos e que eu era, deveras, o primeiro poeta
que você conhecia pessoalmente. Ignoro se sabia que desde o primeiro instante
que a vira, mesmo ciente de já naquele tempo ser algo fora de moda, eu a
considerara minha musa.
Começávamos
a trocar constantes referências e impressões literárias. Aproximávamo-nos. Não
sei se você se sentia tão perto, o que ocorria comigo. A paixão quer sangue e corações arruinados. Diria o poeta Renato
Russo em uma música ao meu coração. Eu não quis ouvir. Pior para mim. Eu não
contava com o fato de me apaixonar por você. Eu me aproximei demais. Vi cores
em nossos momentos, cores que você de repente não visse. Abraços sem
compromisso, beijos curtos e furtivos, detalhes
tão pequenos de nós dois dos quais a memória não consegue se desvencilhar.
Eu
não desejaria nada mais além de você naquele tempo e foi o que me fez incorrer
na cegueira de deixar expresso ao invés de apenas impresso em livro o meu amor
por você. Assim feito, a nossa amizade começou a arrefecer. Duas estradas bifurcaram ante nossos
passos: você escolheu a mais trilhada, rumo a uma grande metrópole, hoje eu
moro no quase ermo. Depois do texto, depois do ensaio, depois da cena o ato se
fechou de forma inglória: descobri que o amor pode ser motivo de separação.
***
Edson
Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi
professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da
mesmice (2000), Historinhas integrais
em prosa e verso (2015), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).
Ilustração: Vinícius Ribeiro, autor de vários desenhos publicados em seu perfil
do Instagram @vinny.arts. É apaixonado pela arte de desenhar nas horas vagas e nasceu
em Pirapora – MG.