Encontro Miró
num café. Ele tromba em mim e aproveita a colisão para oferecer seu mais
recente livro, aDeus. Sentamos numa
mesa, ele toma um cafezinho – é o que o dinheiro dá. Eu não peço nada. Estamos
numa manhã de novembro e isso se justifica quando uma folha totalmente amarela
despenca da árvore sobre nós. Conversamos sobre o livro, sobre quem sou, sobre
quem nos tornamos. Nós, os desconhecidos. Quem os desconhecidos se tornam? a
gente se pergunta, cotovelos apoiados na mesa. Desde logo compreendo que Miró
oferece sua poesia a qualquer um com quem tromba. Esbarrar é sua publicidade e
sua fome.
Parou com a bebida após quase morrer
sozinho no prédio onde morava. Não havia mais ninguém no apartamento e no
prédio inteiro quando ligou para um dos poucos amigos e disse: me tira daqui. O
amigo é o Wilson, um médico, que parou tudo o que estava fazendo para salvar a
vida do poeta. Miró ficou dez dias internado no hospital, sob efeito do
delírio. E Wilson, como recompensa, ganhou uma dedicatória – era o que o
dinheiro dava.
solidão é no caixa eletrônico
esquecer a senha
solidão é planta
sentir falta d´água
ver Muribeca indo embora
solidão é você partindo
sem ninguém na rodoviária
as lágrimas caindo
e você com esperança
de que a chuva molhe o chão
Conto, em
contrapartida, sobre a dificuldade de chegar até aqui, neste novembro. Miró,
então, aperta meu braço, me olha como se olha um poço, e diz: que bom que você
veio. Estamos vivos e esta folha muito amarela caiu quando sentamos. Olha, todo
dia pego minha bicicleta, coloco uma porção de livros na mochila e vou vender
eles na rua. Tem dia que não vendo nada e bate um desespero. Noutro, consigo
vender tudo, não volto com nenhum livro pra casa. O que sei é que vivo.
estou indo
carrego música
e um silêncio
imenso
dentro de mim
estou indo
na mochila
alguns poemas
para ofertar
aos corações
sem amor
para os que
não acreditam
que a vida é
possível
que beijar
é melhor que
comprar
um revólver
estou indo
o dia
amanheceu
e Deus não dorme
Escrevi muitos desses poemas
enquanto estava no hospital. Pra mim, eu já estava morto. Agora estou aqui,
parei de beber e olha este cafezinho. Um amigo me disse que voltei a escrever
como Drummond. Será que é mesmo? Depois de tanto gritar o que escrevo por aí,
este é um livro pra falar baixo, é isso?
alguns
desertos
não precisam
de camelos
alguns
desertos
não precisam
de um copo d´água
precisam de
abraços
e a saliva de
um beijo
alguns
desertos
não ter força
nem de abrir a
porta
mesmo com a
chave na mão
alguns
desertos
nem portas têm
Miró é um poeta
de verdade. Sei disso porque ainda sinto o calor de sua mão em meu braço. Sei,
porque quando ele entremeia seus versos ao que conta, fecha as pálpebras, introduz
um breve silêncio. Sempre tive para mim que poeta de verdade sabe a hora certa
de fechar os olhos, a hora certa de abrir. Posso nunca mais cruzar com nenhum
poeta. Compro o livro. Na dedicatória, ele me escreve assim:
Para
Douglas
De
Minas e do Mundo
Prazer
nessa quinta de calor
humano
***
Douglas
de Oliveira Tomaz, 23 anos, é autor do blog pessoal www.abrigosdevagabundo.blogspot.com.br,
foi premiado pelo concurso literário do Clube de Escritores de Ipatinga – MG
(Clesi) e possui textos seus publicados pelas revistas Jangada e Conhecimento
Prático - Literatura. Publica mensalmente crônicas n’O Salto
(www.osaltobarranqueiro.blogspot.com.br) e mora em Belo
Horizonte, onde escreve seu primeiro livro de contos.
Vinícius Ribeiro, artista. Começou
a desenhar desde a mais tenra idade e nunca mais parou. Atualmente, estuda
Artes Visuais na Universidade Estadual de Montes Claros. Colabora
periodicamente como ilustrador para O
Salto, além de ser autor do blog pessoal Pensamento Ilustrado ( http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)