sábado, 24 de dezembro de 2016

Arribação: "no tanque e no copo d´agua tsunamis" - Lucas Túlio Pereira



GAIVOTA

Lançarei um livro de poemas
sobre o mar

o sal assinará as folhas
o farfalhar das páginas
ansiando serem asas

lançarei um livro de poemas
sobre o mar

Com o nome gaivota



***



Muito atrito
(e também
muita fricção)

Muita coisa
à queima roupa
no tanque e no copo
d’água tsunamis

Por fim sumi
como mancha
quando se usa
aquele sabonete

da
pro
pa
gan
da


***



Lucas Túlio Pereira nasceu em Belo Horizonte em 1994, é estudante de Letras pela Universidade do Estado de Minas Gerais. Tem seus textos e poemas publicados nos sites Ornitorrinco e Revista Usina. 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Crônica com Miró




Encontro Miró num café. Ele tromba em mim e aproveita a colisão para oferecer seu mais recente livro, aDeus. Sentamos numa mesa, ele toma um cafezinho – é o que o dinheiro dá. Eu não peço nada. Estamos numa manhã de novembro e isso se justifica quando uma folha totalmente amarela despenca da árvore sobre nós. Conversamos sobre o livro, sobre quem sou, sobre quem nos tornamos. Nós, os desconhecidos. Quem os desconhecidos se tornam? a gente se pergunta, cotovelos apoiados na mesa. Desde logo compreendo que Miró oferece sua poesia a qualquer um com quem tromba. Esbarrar é sua publicidade e sua fome.

Parou com a bebida após quase morrer sozinho no prédio onde morava. Não havia mais ninguém no apartamento e no prédio inteiro quando ligou para um dos poucos amigos e disse: me tira daqui. O amigo é o Wilson, um médico, que parou tudo o que estava fazendo para salvar a vida do poeta. Miró ficou dez dias internado no hospital, sob efeito do delírio. E Wilson, como recompensa, ganhou uma dedicatória – era o que o dinheiro dava.



solidão é no caixa eletrônico
esquecer a senha

solidão é planta
sentir falta d´água
ver Muribeca indo embora

solidão é você partindo
sem ninguém na rodoviária

as lágrimas caindo
e você com esperança
de que a chuva molhe o chão



Conto, em contrapartida, sobre a dificuldade de chegar até aqui, neste novembro. Miró, então, aperta meu braço, me olha como se olha um poço, e diz: que bom que você veio. Estamos vivos e esta folha muito amarela caiu quando sentamos. Olha, todo dia pego minha bicicleta, coloco uma porção de livros na mochila e vou vender eles na rua. Tem dia que não vendo nada e bate um desespero. Noutro, consigo vender tudo, não volto com nenhum livro pra casa. O que sei é que vivo. 



estou indo
carrego música
e um silêncio imenso
dentro de mim

estou indo
na mochila
alguns poemas para ofertar
aos corações sem amor

para os que não acreditam
que a vida é possível
que beijar
é melhor que comprar
um revólver

estou indo
o dia amanheceu
e Deus não dorme



Escrevi muitos desses poemas enquanto estava no hospital. Pra mim, eu já estava morto. Agora estou aqui, parei de beber e olha este cafezinho. Um amigo me disse que voltei a escrever como Drummond. Será que é mesmo? Depois de tanto gritar o que escrevo por aí, este é um livro pra falar baixo, é isso?



alguns desertos
não precisam de camelos

alguns desertos
não precisam de um copo d´água

precisam de abraços
e a saliva de um beijo

alguns desertos

não ter força
nem de abrir a porta
mesmo com a chave na mão

alguns desertos
nem portas têm



Miró é um poeta de verdade. Sei disso porque ainda sinto o calor de sua mão em meu braço. Sei, porque quando ele entremeia seus versos ao que conta, fecha as pálpebras, introduz um breve silêncio. Sempre tive para mim que poeta de verdade sabe a hora certa de fechar os olhos, a hora certa de abrir. Posso nunca mais cruzar com nenhum poeta. Compro o livro. Na dedicatória, ele me escreve assim: 



Para Douglas
De Minas e do Mundo
Prazer nessa quinta de calor
humano



***



Douglas de Oliveira Tomaz, 23 anos, é autor do blog pessoal www.abrigosdevagabundo.blogspot.com.br, foi premiado pelo concurso literário do Clube de Escritores de Ipatinga – MG (Clesi) e possui textos seus publicados pelas revistas Jangada e Conhecimento Prático - Literatura. Publica mensalmente crônicas n’O Salto (www.osaltobarranqueiro.blogspot.com.br) e mora em Belo Horizonte, onde escreve seu primeiro livro de contos.


Vinícius Ribeiro, artista. Começou a desenhar desde a mais tenra idade e nunca mais parou. Atualmente, estuda Artes Visuais na Universidade Estadual de Montes Claros. Colabora periodicamente como ilustrador para O Salto, além de ser autor do blog pessoal Pensamento Ilustrado ( http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)