Antes que eu
cortasse o cabelo há mais ou menos um mês atrás, ainda que minha perspectiva de
tempo não me dê certeza dos dias, ou de como passam − mantive nos fios, antigos
e mais longos, o sabor dos dias em que talvez te amasse. Não é totalmente
absurdo dizer que a possibilidade de amor pesa a cabeça, e os cabelos precisam
ir pra gente continuar vivendo sem carregar essa ideia no topo do mundo da
gente mesmo.
Cortados os fios,
cheguei em casa tranquila, mas olhei a janela um dia desses, o que me fez recordar,
nos fios antigos, a visão da sua. A minha continua a dar pra varais e barulhos
de carros e buzinas. O amor, sempre juvenil, é esse ruído todo, era o que minha
mãe dizia enquanto eu chorava por alguma paixão adolescente. Pegava a tesoura,
e ia aparando cuidadosa, ponta a ponta, às vezes me punha franjas, às vezes me
desfiava, e o peso do mundo desaparecia, porque era outra a pessoa que surgia
debaixo das tesouras de minha mãe.
Olhando as janelas:
“despe-te dos ruídos”, aparecem os versos que não recordo de quem são e me
gritam por dentro, como se lá, no profundo das coisas, existisse sempre alguém
que me rodeia e me grita poesia quando me lembro de ti. Os cabelos crescem num
outro tom de afeto, mas você vez ou outra me aparece num ruído ou sonho
qualquer, e fico imaginando como teria sido se. A cabeça ruidosa se apega menos
aos fios, às vezes, e experimenta o oco da luz do fim da tarde, o sino das
horas inteiras da igreja do lado, de um dia na cozinha enquanto tateávamos, no
escuro, a tentativa do corpo do outro.
Talvez haja amor
não por ti, mas pela lembrança barulhenta que vem na fantasiação e me faz
colocar Vinicius pra tocar em dia de sábado, como se cortasse os cabelos
novamente e desfiasse no som das coisas o passo ruidoso que antecede a gente
ante a esse esforço subtil de esquecer.
– porque hoje é
sábado.
***
Brenda
K. Souza, 24 anos, mestranda em estudos literários.
Ilustração: Barbarete,
ou Bárbara Louzada. Artista, tatuadora e geógrafa, sobretudo uma entusiasta da
vida. Atualmente, estuda Artes Plásticas na Universidade Federal do Espírito
Santo, mas conserva a certeza de que os cantos do mundo têm muito mais a
ensinar e a revelar sobre o universo da arte e do sentir.