terça-feira, 6 de setembro de 2016

Um dos últimos dodôs



Meus pés pisavam folhas secas de eucalipto. Farfalhos e estalidos de gravetos se faziam ouvir. Vários carrapatos, alguns pequenos e outros relativamente grandes subiam pelas minhas pernas, invadiam partes íntimas, picavam, principalmente a região escrutina que coçava, coçava muito. Meu irmão me acompanhava nessa empreitada. Catávamos lenha para acender a fogueira na fornalha, cozinhar o feijão, economizar o gás e diminuir a tristeza noturna do frio julho.

Era proibido catar lenha naqueles pastos. Às vezes o ronda nos surpreendia, obrigava-nos a correr, de maneira desabalada, os feixes nos ombros, passar debaixo das cercas de arame farpado, às vezes nos machucávamos nas pontas enferrujadas do arame. Carecíamos de álcool para passar nas feridas, livrar-nos no mínimo da cisma do tétano. Quase nunca havia.

Não sei por que, meu pai me apelidou de Dodô. Talvez por esta cara de sonso e aludindo ao personagem de Alice no País das Maravilhas, cara que fazia alguns me chamarem de Sonson. Meu irmão, o Henrique, era apelidado de Ique. Lembra soluço. Tais apelidos, creio, pegaram mais porque meu pai, todos os meses, na véspera de pagamento, costumava nos presentear com carrinhos de brinquedo, de plástico. Para mim uma Bascola, para meu irmão um Volks.

O velho tinha uma sanfona antiga, vermelha, pequena, oito baixos, da Hering. Tinha a mania de cantar de uma maneira bem peculiar, enquanto tocava:

- Vôca do Ique, Bascola do Dodô. Vôca do Ique, Bascola do Dodô.

Às vezes mudava a toada, o que para mim era um alívio, já que, a molecada da Rua J. B. D. costumava ouvir seu Afonso tocar, ao passar na rua, decorar o som para que nós pudéssemos lhes servir de chacota. Tenho o estopim bem curto, por isso eu sofria mais.

Outras toadas clássicas de meu pai eram:

- Para, Pedro! Pedro, para. Ou:

- Dona Mariquinha foi tomar banho na gamela, a água estava quente e sapecou a bunda dela.

Crescemos com o sonho de comprar um carro. Não consegui o feito, que acabou sendo realizado por meu irmão.

Não sabíamos dirigir. No dia da compra, bebemos muito para comemorar, não um Volks, sim um Opala amarelo. Meu irmão emprestou o carro a um primo que sabia dirigir, para teste. O último saiu e ficamos sentados a uma mesa, próximos ao balcão do bar, onde bebíamos.

Esquecidos de que havíamos emprestado o carro, saímos do bar, bebíssimos. Não vimos o veículo, ficamos desesperados, a sensação de termos sido roubados. Procuramos pela região do bar, nada achamos, chamamos a polícia, fizemos B. O. Por fim, fomos para casa.

Apesar da tristeza, foi fácil dormir, mergulhados naquele mundo de águas.

Pela manhã, com a maior cara de ressaca, meu irmão foi contar à sua esposa que o carro havia sido roubado, a ponto de dar vazão a um pranto. Ela lhe disse:

- Então, eu estou variando. Que Opala amarelo é aquele que seu primo trouxe e guardou na garagem?

Ele:

- Eu já sabia. Estava só brincando.

Apareci na casa de Henrique, mais tarde, surpreendi-me, ao vê-lo, como uma criança; simulava dirigir, buzinava, fazia ruídos de automóvel com a boca, à maneira que brincávamos em pequenos.

- Entre aqui, cara.

Entrei no Opala. Ele pegou uma fita e colocou para tocar uma música da banda alemã: Accept.  Metal Heart.

Ficamos ali, umas longas horas.

Agora, imagino como era fácil, no tempo mais comum de o sonho fluir, andar de carro, mesmo sem saber dirigir, viajar pelo mundo inteiro, sem sair do lugar.


***


Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).


Ilustrações: Vinícius Ribeiro (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)

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