Ser
um garoto com ar de gasto desde os primórdios da infância tem lá ao menos uma
vantagem: passar despercebido, por exemplo. As pessoas o têm como uma face
vista e revista vezes sem conta, mesmo à primeira vista.
Jonas Júnior Silva. O nome da
pessoa.
Uma criaturinha que moldava sua
personalidade (se é que tinha alguma) ao ritmo da monotonia. Jonas Júnior Silva
tivera tataravô, bisavô, avô, pai e tios com o nome de Jonas. Jonas tinha com
todos seus parentes uma semelhança significativa. Ele era uma pessoa
transparente demais. Tinha cicatrizado à flor da alma (se é que tinha alguma) o
receio de guardar segredos. E não é segredo de ninguém que uma pessoa para ser
considerada interessante precisa acumular alguns segredos.
Jonas Júnior Silva era chamado pelos
amigos de infância de Xará. O epíteto fossilizou, tomou forma de perenidade.
Nada de mal. Xará é aquele que tem o mesmo nome. Nenhuma nuance a mais a
acrescentar ao livro aberto dessa vida em voga. Uma vida besta, diria Drumonnd em um de seus célebres poemas.
Em referência sonora à palavra
célebre, Xará tinha três cães. Cruzamento de pitbull com vira-lata. Os três
cães tinham o mesmo nome: Cérebro, que, por sua vez, aludia ao nome mítico de Cérbero, o cão de três cabeças, guardião
do portal do inferno.
A esquisitice do menino não parava
por aí. Sua coleção de minhocas era outro caso. Ele não deixava as minhocas
passarem de sete. Quando tal número era ultrapassado com o surgimento de novos
comedores de lama, ele separava os maiores, os aparentemente mais saudáveis,
excluía, assim, os mais fracos, que sacrificava aos peixes de um aquário, onde
criava pirambebas, pequenos peixes da
espécie das piranhas, em ato bastante cerimonial.
– Um projeto de Hidra –, definia, assim, Jonas, a sua coleção de minhocas.
Complementava que os bichos também raciocinam, mas que o uso acentuado do lado
direito, o criativo, e o do lado esquerdo, o racional, é predicado dos humanos.
Ao ouvi-lo assim falar, seus pais achavam que o filho tinha miolos de minhoca.
Jonas, ou Xará, tinha dificuldade de
recordar nomes e muita facilidade de esquecê-los. Ele ainda sofria, solitário,
uma crise de identidade que insistentemente negava.
Porém, em seu caderno de
apontamentos, era comum (o que não era comum em um menino que negava ser
incomum o tempo todo?) serem encontradas frases de teor cáustico, recicladas de
leituras feitas ao longo de seu tempo, em um caderno de apontamentos. Exemplos:
1
– A existência é um osso antigo que ainda verte sangue virgem nas mãos de um
mendigo imerso em ilusão.
2
– Pé de rosa nasce num jardim mal cuidado, onde, de forma furtiva, feto
abortado foi enterrado.
3
– Cheiro de peixe podre. Mosca excitada, a ponto de copular com lâmpada
apagada. Lâmpada apagada, acossada. Tímpanos zumbem. Verbo crescer em forma de
gerúndio: CRESCENDO!
4
– Quem pariu a humanidade foi uma pedra.
E por aí ia. Tudo documentado, visto
e revisto, desde a capa à contracapa.
***
Edson
Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro-MG há 16 anos, onde foi
professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e
autor dos livros Alice no país da mesmice
(2000), Historinhas integrais em prosa e
verso (2015) e Piolhos (2016),
além de ter participado das antologias Combustível,
Metal e Poema (2011) e Antalogia
Poética (2009).
Ilustração: Vinícius Ribeiro. Começou a
desenhar desde a mais tenra idade e nunca mais parou. Atualmente, estuda Artes
Visuais na Universidade Estadual de Montes Claros. Colabora periodicamente como
ilustrador para O Salto, além de ser
autor do blog pessoal Pensamento
Ilustrado (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)