Vento. Uivos. Os pés de
eucaliptos dançam. Não sei se as enormes raízes que se fincam na terra têm o
objetivo de se entrelaçar, de formar uma unidade, de ocupar o espaço alheio.
Imagino vizinhança, muros. Um pássaro chamado indefinição me diz que onde eucalipto
brota, a terra se torna estéril. Às vezes alma fica neste estado: como figueira
aos rogos de pragas de Cristo. Mas a dança é bela quando o vento sopra os
eucaliptos.
De colossais alturas,
às vezes, algum galho cai, com estrépito. A queda é algo mais que acorda o todo
de seu estado habitual. Sentir a impressão de um corpo humano em baque. O meu
corpo, quem sabe. Alguns troncos são mais grossos que outros. Isso me lembra de
disputa por espaço. Parece indolente o olhar sobre o exército verde. Há um cheiro
levemente agradável a vir dali.
Fica próximo do
Cemitério da Saudade. Por que todo cemitério é da saudade? E os esquecidos ao
morrer? Um banco perto da BR, na saída da cidade. Um curral velho, desativado
entre elas, as árvores. Inútil sina de servir para queimar. Um dia, até as
enormes raízes serão retiradas daqui como lembranças inúteis. Arquivo onde
mortos se perpetuam.
De repente, nem defino
o momento em que meu corpo sentido pesado é içado de seu estado inerte.
Enquanto caminho, carrego, no peito, uma paranoia gigantesca. Aquela encrenca
com a qual eu nada tinha contas a acertar. Um sujeito magro, de barba tão
cerrada quanto a minha, correndo. “É aquele! É aquele!” gritos de uma mulher.
Um sujeito magro, de barba tão rala quanto a minha, às carreiras. Derradeira
visão de momento X. Um golpe em minhas costas. Se existe uma dor grave e aguda
ao mesmo tempo é esta. A calçada de paralelepípedos parece investir contra o
meu rosto e se vestir de vermelho. Sangue. Quanto sangue! Não tenho a sorte de
desmaiar.
Alguém me leva ao
hospital. Sou levado a um banheiro de água fria. Ao contato com o líquido,
sinto dor inenarrável. Ao costurar meus ferimentos, a enfermeira pergunta se
dói. “Claro que dói, sua burra. Anestesia não pega em ébrio.” Só penso em
dizer. No dia após, vou trabalhar, o chefe me dispensa. Diz que com minha cara
semelhante à de Frankenstein vou assustar os demais funcionários e clientes.
Valho-me de eufemismo e considero isso um ato de solidariedade.
Quando, de forma
involuntária, a gente mergulha num abismo literal, são raras, mas algumas
visitas nos dão o ar de sua graça. Duas meninas. Duas amigas. Uma delas mais
amiga. Não gosto dos olhares de dó sobre mim. Eles me fazem sentir pena de mim
também. Passo a mão no olho esquerdo de forma intensamente furtiva para que não
percebam que enxugo uma lágrima. “Juízo. Cuide-se. Nós gostamos de você.”
Conversas consoladoras costumam terminar assim. É horrível a sensação de
solidão que se apodera da gente se quem oferece um abraço de conforto a seguir se
vai e nos deixa em companhia de quatro paredes.
Enquanto tenho o
atestado de convalescência, apresento-me em alguns bares. Os ferimentos
cicatrizam. A mágoa, não. Mas os remédios não são tão necessários a ponto de o
álcool ser dispensado. Não bebo no bar do Jota desde o dia em que a mulher com
migalhas de vaidade insurgiu contra mim. Ao entrar no recinto percebi que ela
se achava aparentemente feliz. Jogava sinuca, bebia cerveja no bico da garrafa,
colocava a garrafa no chão, engraçava-se a simular um som de axé, sentava-se no colo de homens com
odor de pinga e fumo e ria, ria muito.
Eu já havia sofrido
preconceito racial, mas não de forma tão escancarada. Quando a mulher dizia com
orgulho que era fluminense, que nascera na cidade do rio de janeiro, glosava a
minha ignorância e a dos demais frequentadores que ali se achavam, mas ao falar
olhava diretamente mais em minha direção. Sua alegria e entusiasmo duraram até
o dinheiro se acabar e ela começar a procurar alguém para lhe pagar mais
bebidas. Ímã de forças negativas, eu mereço.
“Ô israelita!” voz
dela, em tom bem alto. Fingi não
entender, fingi que não era comigo. “Ô israelita!” ela insistiu. Levantou-se da
mesa do canto do bar onde se achava. A saia muito curta mostrava as pernas
brancas estriadas. Uma blusa transparente mostrava seus seios flácidos com
algumas gotas de suor escorrendo no colo. Um ar de baronesa, um ar de
intolerância. Meu alvo maior de observação não foi o chapéu de coco que ela
usava. Nem os óculos escuros, sem lugar para a tarde que já tinha mesmo postes
de luz acesos.
Um toque no meu braço.
Senti o hálito. Nada bom. “Ô, você é feio como um israelita, mas deve ter
dinheiro para me pagar alguns copos de cerveja!” era comigo. “Dona, já lhe
disseram que a senhora tem uma prosa muito ruim?” Misto de perua e pavoa, ela
se exaltou um pouco mais que quando falava de suas origens. “Nunca fui tão
humilhada em toda minha vida, ainda mais por um israelita fedorento!” Com uma
bola de sinuca e uma garrafa na mão teve de ser contida pelo Jota para não me
agredir fisicamente. Ele a mandou embora do bar e ela, ao sair, gritava:
“Israelita de merda! Israelita de merda!”
Agora, aqui, na sexta
garrafa de cerveja, penso que, às vezes, o que resta a alguém sem a grande
sorte de ter o direito de ir e vir, sem ser perturbado, alguém que vive à mercê
de preconceitos vários, é brindar à infelicidade. “Saia da mesa, quem é
covarde!”
***
Edson
Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi
professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e
autor dos livros Alice no país da mesmice
(2000), Historinhas integrais em prosa e
verso (2015), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).
Ilustrações: Vinícius
Ribeiro (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)