terça-feira, 19 de abril de 2016

Bela companhia, sincera e ligeira


Vento. Uivos. Os pés de eucaliptos dançam. Não sei se as enormes raízes que se fincam na terra têm o objetivo de se entrelaçar, de formar uma unidade, de ocupar o espaço alheio. Imagino vizinhança, muros. Um pássaro chamado indefinição me diz que onde eucalipto brota, a terra se torna estéril. Às vezes alma fica neste estado: como figueira aos rogos de pragas de Cristo. Mas a dança é bela quando o vento sopra os eucaliptos.

De colossais alturas, às vezes, algum galho cai, com estrépito. A queda é algo mais que acorda o todo de seu estado habitual. Sentir a impressão de um corpo humano em baque. O meu corpo, quem sabe. Alguns troncos são mais grossos que outros. Isso me lembra de disputa por espaço. Parece indolente o olhar sobre o exército verde. Há um cheiro levemente agradável a vir dali.

Fica próximo do Cemitério da Saudade. Por que todo cemitério é da saudade? E os esquecidos ao morrer? Um banco perto da BR, na saída da cidade. Um curral velho, desativado entre elas, as árvores. Inútil sina de servir para queimar. Um dia, até as enormes raízes serão retiradas daqui como lembranças inúteis. Arquivo onde mortos se perpetuam.

De repente, nem defino o momento em que meu corpo sentido pesado é içado de seu estado inerte. Enquanto caminho, carrego, no peito, uma paranoia gigantesca. Aquela encrenca com a qual eu nada tinha contas a acertar. Um sujeito magro, de barba tão cerrada quanto a minha, correndo. “É aquele! É aquele!” gritos de uma mulher. Um sujeito magro, de barba tão rala quanto a minha, às carreiras. Derradeira visão de momento X. Um golpe em minhas costas. Se existe uma dor grave e aguda ao mesmo tempo é esta. A calçada de paralelepípedos parece investir contra o meu rosto e se vestir de vermelho. Sangue. Quanto sangue! Não tenho a sorte de desmaiar.

Alguém me leva ao hospital. Sou levado a um banheiro de água fria. Ao contato com o líquido, sinto dor inenarrável. Ao costurar meus ferimentos, a enfermeira pergunta se dói. “Claro que dói, sua burra. Anestesia não pega em ébrio.” Só penso em dizer. No dia após, vou trabalhar, o chefe me dispensa. Diz que com minha cara semelhante à de Frankenstein vou assustar os demais funcionários e clientes. Valho-me de eufemismo e considero isso um ato de solidariedade.

Quando, de forma involuntária, a gente mergulha num abismo literal, são raras, mas algumas visitas nos dão o ar de sua graça. Duas meninas. Duas amigas. Uma delas mais amiga. Não gosto dos olhares de dó sobre mim. Eles me fazem sentir pena de mim também. Passo a mão no olho esquerdo de forma intensamente furtiva para que não percebam que enxugo uma lágrima. “Juízo. Cuide-se. Nós gostamos de você.” Conversas consoladoras costumam terminar assim. É horrível a sensação de solidão que se apodera da gente se quem oferece um abraço de conforto a seguir se vai e nos deixa em companhia de quatro paredes.

Enquanto tenho o atestado de convalescência, apresento-me em alguns bares. Os ferimentos cicatrizam. A mágoa, não. Mas os remédios não são tão necessários a ponto de o álcool ser dispensado. Não bebo no bar do Jota desde o dia em que a mulher com migalhas de vaidade insurgiu contra mim. Ao entrar no recinto percebi que ela se achava aparentemente feliz. Jogava sinuca, bebia cerveja no bico da garrafa, colocava a garrafa no chão, engraçava-se a simular um som de axé, sentava-se no colo de homens com odor de pinga e fumo e ria, ria muito.

Eu já havia sofrido preconceito racial, mas não de forma tão escancarada. Quando a mulher dizia com orgulho que era fluminense, que nascera na cidade do rio de janeiro, glosava a minha ignorância e a dos demais frequentadores que ali se achavam, mas ao falar olhava diretamente mais em minha direção. Sua alegria e entusiasmo duraram até o dinheiro se acabar e ela começar a procurar alguém para lhe pagar mais bebidas. Ímã de forças negativas, eu mereço.

“Ô israelita!” voz dela, em tom bem alto.  Fingi não entender, fingi que não era comigo. “Ô israelita!” ela insistiu. Levantou-se da mesa do canto do bar onde se achava. A saia muito curta mostrava as pernas brancas estriadas. Uma blusa transparente mostrava seus seios flácidos com algumas gotas de suor escorrendo no colo. Um ar de baronesa, um ar de intolerância. Meu alvo maior de observação não foi o chapéu de coco que ela usava. Nem os óculos escuros, sem lugar para a tarde que já tinha mesmo postes de luz acesos.

Um toque no meu braço. Senti o hálito. Nada bom. “Ô, você é feio como um israelita, mas deve ter dinheiro para me pagar alguns copos de cerveja!” era comigo. “Dona, já lhe disseram que a senhora tem uma prosa muito ruim?” Misto de perua e pavoa, ela se exaltou um pouco mais que quando falava de suas origens. “Nunca fui tão humilhada em toda minha vida, ainda mais por um israelita fedorento!” Com uma bola de sinuca e uma garrafa na mão teve de ser contida pelo Jota para não me agredir fisicamente. Ele a mandou embora do bar e ela, ao sair, gritava: “Israelita de merda! Israelita de merda!”

Agora, aqui, na sexta garrafa de cerveja, penso que, às vezes, o que resta a alguém sem a grande sorte de ter o direito de ir e vir, sem ser perturbado, alguém que vive à mercê de preconceitos vários, é brindar à infelicidade. “Saia da mesa, quem é covarde!”


***


Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).


Ilustrações: Vinícius Ribeiro (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)

2 comentários:

  1. Valeu demais, mais uma vez, Douglas Tomaz e Vinicius Ribeiro! O arsenal de crônicas aqui segue aumentando.

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  2. Todo texto que leio do Professor Edson é como se eu me tornasse parte da cronica. Espetacular!

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