Perdi o emprego.
Briguei com a mãe.
Preciso recuperar, na
escrita, o frescor das cartas.
Perdoar o cão que me
morde os calcanhares. Oferecer-lhe comida.
Levei meu amor para
passear na beira do rio e na beira do rio o amor se acabou.
O pai me abandonou
antes mesmo de.
Falar “a-mor” pode
destruir o nascituro.
Decepam-me pernas,
braços, repartem meu tronco em dois: consigo salvar a cabeça.
A vizinha morreu
engasgada de silêncio. No porteiro, silêncio virou câncer. No caso da vizinha,
enfiaram-lhe inutilmente o dedo na garganta na tentativa de alcançar o bolo,
entupiram-na de farinha. No caso do porteiro, sonda vasculhou, vasculhou,
vasculhou, mas não encontrou o tumor.
Finalmente recebi salário
que não foi suficiente para quatro meses de atrasos.
É tudo questão de
elaborar um discurso. Se não há palavra que denuncia angústia, não há angústia.
Se não há palavra que avisa: de-ses-pe-ro. Se há apenas silêncio, ninguém
entende nada.
O único alívio foi ter
me livrado do carro. Aquele objeto enorme parado. Pegava chuva. Gerava impostos.
Oxidava. Desenvolvi fobia a carro. Imagine acordar todos os dias pela manhã e
ver aquele objeto ali.
Outro amor: o tipo de amor que não pode dar certo na luz
da manhã.
Nada mais me comove
tanto. Reencontrar amigos, não. Ganhar presentes raros, não. Conquistar
objetivo por muito tempo almejado. Nada.
Desperdiçamos
os blues do Djavan.
Desenvolvo um grau de
mediunidade que me torna cada vez mais avesso a pessoas e lugares. Sinto a
energia das coisas. E senti-la cada vez mais nitidamente significa não entrar,
não abrir aquela porta, não voltar lá, esquecer, esquecer. Perder amigos. Cada vez
mais insondável.
Não acredito na redenção
pela literatura. Recuperar o frescor das cartas talvez não adiante de nada.
A mãe envelheceu. Sua
pele não está mais uniforme. Não é o tempo, cansaço chegou antes. O rosto do
pai, porém, ainda é a mesma distância. Nunca se aproximou para eu ver.
Mais um amigo se
suicida. Dessa vez, uma amiga trans. Tomou remédios, pulou da janela. A última
lembrança que tenho dela é a imagem de seus passos rápidos, cabeça baixa, olhar
delirante, pela rua. Do outro lado da via, ela parecia cada vez mais
perturbada. Não atravessei o asfalto para lhe perguntar se estava tudo bem, se
eu poderia. Minhas perturbações, também eu as carregava. Sua cabeça baixa, seu
olhar delirante também eram meus – motivações distintas. Quando soube da notícia,
era manhã, tomava leite com achocolatado, comia uns biscoitos, ouvia Nara Leão.
No prato, um último biscoito sobrou – ainda sobra. Nara cantava para ninguém.
Perante a vida, todos nós
fracassamos.
Somos o acúmulo dos
nossos mortos.
E
minha poesia é um vício triste/ que faço tudo por abafar.
***
Douglas
de Oliveira Tomaz, nascido em 1993, é autor do blog pessoal www.abrigosdevagabundo.blogspot.com.br,
recebeu uma menção honrosa no concurso literário do Clube de Escritores de
Ipatinga – MG (Clesi), edição 2013, e possui textos seus publicados pela Revista Jangada e Conhecimento Prático - Literatura. Em 2015, lançou de modo
artesanal seu primeiro livro de poemas: Escorre.
Atualmente, reside em Belo Horizonte.
Ilustração:
Vinícius Ribeiro (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)
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