sábado, 2 de abril de 2016

O mundo me tornou egoísta e mau


Perdi o emprego.

Briguei com a mãe.

Preciso recuperar, na escrita, o frescor das cartas.

Perdoar o cão que me morde os calcanhares. Oferecer-lhe comida.

Levei meu amor para passear na beira do rio e na beira do rio o amor se acabou.

O pai me abandonou antes mesmo de.

Falar “a-mor” pode destruir o nascituro.

Decepam-me pernas, braços, repartem meu tronco em dois: consigo salvar a cabeça.

A vizinha morreu engasgada de silêncio. No porteiro, silêncio virou câncer. No caso da vizinha, enfiaram-lhe inutilmente o dedo na garganta na tentativa de alcançar o bolo, entupiram-na de farinha. No caso do porteiro, sonda vasculhou, vasculhou, vasculhou, mas não encontrou o tumor.

Finalmente recebi salário que não foi suficiente para quatro meses de atrasos.

É tudo questão de elaborar um discurso. Se não há palavra que denuncia angústia, não há angústia. Se não há palavra que avisa: de-ses-pe-ro. Se há apenas silêncio, ninguém entende nada.

O único alívio foi ter me livrado do carro. Aquele objeto enorme parado. Pegava chuva. Gerava impostos. Oxidava. Desenvolvi fobia a carro. Imagine acordar todos os dias pela manhã e ver aquele objeto ali.

Outro amor: o tipo de amor que não pode dar certo na luz da manhã.

Nada mais me comove tanto. Reencontrar amigos, não. Ganhar presentes raros, não. Conquistar objetivo por muito tempo almejado. Nada.

Desperdiçamos os blues do Djavan.

Desenvolvo um grau de mediunidade que me torna cada vez mais avesso a pessoas e lugares. Sinto a energia das coisas. E senti-la cada vez mais nitidamente significa não entrar, não abrir aquela porta, não voltar lá, esquecer, esquecer. Perder amigos. Cada vez mais insondável.

Não acredito na redenção pela literatura. Recuperar o frescor das cartas talvez não adiante de nada.

A mãe envelheceu. Sua pele não está mais uniforme. Não é o tempo, cansaço chegou antes. O rosto do pai, porém, ainda é a mesma distância. Nunca se aproximou para eu ver.

Mais um amigo se suicida. Dessa vez, uma amiga trans. Tomou remédios, pulou da janela. A última lembrança que tenho dela é a imagem de seus passos rápidos, cabeça baixa, olhar delirante, pela rua. Do outro lado da via, ela parecia cada vez mais perturbada. Não atravessei o asfalto para lhe perguntar se estava tudo bem, se eu poderia. Minhas perturbações, também eu as carregava. Sua cabeça baixa, seu olhar delirante também eram meus – motivações distintas. Quando soube da notícia, era manhã, tomava leite com achocolatado, comia uns biscoitos, ouvia Nara Leão. No prato, um último biscoito sobrou – ainda sobra. Nara cantava para ninguém.

Perante a vida, todos nós fracassamos.

Somos o acúmulo dos nossos mortos.

E minha poesia é um vício triste/ que faço tudo por abafar.


***


Douglas de Oliveira Tomaz, nascido em 1993, é autor do blog pessoal www.abrigosdevagabundo.blogspot.com.br, recebeu uma menção honrosa no concurso literário do Clube de Escritores de Ipatinga – MG (Clesi), edição 2013, e possui textos seus publicados pela Revista Jangada e Conhecimento Prático - Literatura. Em 2015, lançou de modo artesanal seu primeiro livro de poemas: Escorre. Atualmente, reside em Belo Horizonte.

Ilustração: Vinícius Ribeiro (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)

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