Há esses dias em que
tudo que toco vira sal. Termina o espetáculo e não paro de chorar. Algum
desconhecido me consola, depois parte. Saio do prédio e a cidade está diante
dos meus olhos. Inteira. Permaneço por longos minutos parado numa esquina. É
noite nesta encruzilhada. Me disseram que os caminhos já estavam todos
traçados. Cato pelas calçadas os livros espalhados.
Ratos correm pelas ruas
do centro, isso ninguém conta sobre cidade alguma. O forasteiro só descobre
depois que chega – tarde demais. Quero espalhar pelos postes o seguinte aviso:
cuidado ao pisar. “Tudo começa e termina nos pés” não estará no cartaz. Nem os
livros, nem os ratos, nem os avisos: ninguém parece repará-los.
O espetáculo me fez
chorar, digo no ônibus para a mulher ao meu lado. Ela me oferta tudo que tem:
seu sorriso de quem já não pode sorrir mais. Depois que desiste de mostrar os
dentes, lança um olhar desconfiado para os livros que carrego no colo. Aponta
para um e me diz: lê. Passo as páginas à cata de algum poema que satisfaça. A
minha vida depende desta leitura – transpareço pelas mãos trêmulas. A voz falha
mas começo. Sobrevivo verso por verso. E, no fim, ela aprova apenas com um
grunhido. Na próxima estação, desce.
Continuo lendo em voz
alta dentro do ônibus. Um homem alguns bancos à frente inclina a cabeça para o
lado, talvez assim me ouça melhor. Emposto mais a voz para que ele se vire e me
olhe. Quem sabe cara a cara eu pare de declamar. Quem sabe cara a cara minha
fala se extinga de vez. Quem sabe olho no olho, talvez. Não há poema que saiba
o que seja a palavra amor.
O homem não se vira
nunca, mas aparece um vendedor de balas com um radinho pendurado no pescoço. Menina veneno, o mundo é pequeno abafa qualquer
tentativa e me calo e o abajur cor de carne informa a todos, de modo mais
eficaz para esta hora da noite, o que é poesia então. O vendedor cantarola,
como se a música já não servisse de anúncio. O vendedor cantarola e instaura um
cânone. Compro duas balas.
Desembarco. Hoje não
existe banho que possa resolver. Tropeço e os livros caem dos meus braços,
espalham-se pela calçada de pedra. Ia recolher um por um, mas desisto. Deixe
que fiquem. Quero voltar pra casa. Conter o gesto até desaparecer.
***
Douglas
de Oliveira Tomaz, 23 anos, é autor do blog
pessoal www.abrigosdevagabundo.blogspot.com.br,
recebeu uma menção honrosa no concurso literário do Clube de Escritores de
Ipatinga – MG (Clesi) e possui textos seus publicados pela Revista Jangada e Conhecimento
Prático - Literatura. Em 2015, lançou de modo artesanal seu primeiro livro
de poemas: Escorre. Atualmente, mora
em Belo Horizonte, onde escreve seu primeiro livro de contos.
Ilustração:
Vinícius Ribeiro (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)
Que lindo!
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