sábado, 18 de fevereiro de 2017

Seu Joaquim



Acho que os que perdem a crença no amor, mesmo assim, acreditam na perenidade da esperança, guardam fagulhas de juventude na fonte serena da alma.

Diacho de eu perder a crença e, mesmo assim, achar que, de cova, tumba, túmulo e lápide, palavras ecoam no cerne destes pensamentos rasos.

Meu cérebro encontra imagens dele agora.

Um recuo no reino de tais imagens.

Como se memórias fossem as mãos de um Cronos subjugado ou os ponteiros de um relógio ditador que de modo inesperado se coloca a meu bel-prazer.

Agora, uma palavra feia: moribundo. Outra: catacumba. Caixão. Velório. Enterro. 
Agora, as palavras: cadeira e muletas. Outras: cozinha, quarto, sala, soleira.

Quintal, agora não. Que pode se tornar pranto, que pode se tornar choro.

Quando o via ali, eu costumava parar e ouvi-lo. O brilho do olhar em recusa constante à crueldade de tons vermelhos insistentes em tingir a íris e todo o corpo dos olhos com a arte da dor.

Não culpava a vida.

– Deus sabe o que faz.

Agora, ele capina o quintal, rastela folhas, molha plantas. Carinho pelas plantas é imenso. Carinho talvez amor. Diz-se contente com minha presença. Diz que saber preservar amizades é um dos maiores dons de poucos seres humanos, não só dos cães. Agora, pega um saco plástico, colhe algumas carambolas, simultaneamente olha para o céu. Agora, céu sem nuvens de chuva. Decerto, seu olhar é de agradecimento a anjos que quase ninguém vê.  Há piadas mordazes quanto ao fato de as galinhas olharem para o céu ao beberem água. Se repararmos em nosso movimento ao nos saciarmos, notaremos que se levamos o copo aos lábios, a cabeça se inclina levemente para o alto. Agora, antes de me entregar a sacola com os frutos, ele me diz que toda estação tem seus frutos. Coisa boa de existir Deus.

– Alimentar o corpo diverte o espírito. Leve para você se distrair.

Agora, algumas araras fazem orgia no alto do coqueiro e no raro pé de buriti.

– Arara! Arara! Arara! Arara!

Sua voz denota a debilidade trazida pelos anos, mas capto ondas de música no ar.

– Arara! Arara! Arara! Arara!

Repercussão do topo das árvores. Sua boa causa produz efeito.

– Bichos são obras de Deus. Gatos. Cachorros. Galinhas. Porcos. Bois. Cavalos. Também os bichos do mato que vivem na Terra, no ar e na água.

Agora, os peixes me lembram de um dia de pescaria.

– Bom pescar é apoitado, no barco. Pegar Piau Três-Pintas é bom, mas o melhor é o verdadeiro, o Dourado da goela grande, a Matrinchã, o Mandi Amarelo.

Sua empolgação inicial substituída por uma mudez concentrada, paciente. 

Às vezes, o sol cáustico castigava nossa pele. Ânsia sem sufoco. Às vezes, era a noite. Paisagem bucólica. Dois homens a pescar. O barco sob a lua na superfície mais calma das águas do rio São Francisco.

Sua fisgada era certeira. Pegava muitos peixes grandes, mas proibia-se de qualquer entusiasmo que pudesse ser confundido com arrogância. Dissimulava o riso, quando eu que não tinha o talento de pescador me equivocava com algum puxão forte e fisgava alguma Piabinha à toa.

– Você pegou pouco.

Era o que dizia, olhando para minha enfieira de Piabas, Piaus Jejos e Mandis Brancos. Pedia para eu escolher dois dos peixes maiores que tinha fisgado.

– Dá procê fazer um molho.

Depois.

Agora, as carambolas. Agora, as araras. Regador. Rastelo. Enxada.

Agora, hospital. Médico. Consulta. Diabetes. Câncer diagnosticado. Amputação cirúrgica.

Agora, cadeira-de-rodas, muletas.

Agora, brilho esmaecido de olhar sereno em luta contra a crueldade de tons vermelhos insistentes em tingir a íris e todo o corpo dos olhos com a arte da dor.

– Não deixe de me visitar, menino.

Uma lágrima se negando a ser derramada. Meus olhos um pouco molhados.

– Estou aleijado, mas não estou morto.

Agora, diz que saber preservar amizades é um dos maiores dons de poucos seres humanos, não só dos cães.

Agora, a feia palavra: moribundo.

Agora, um quadro na parede da sala.

Agora, uma voz que soa lá de além, voz de silêncio, voz de abnegação.

– Deus sabe o que faz.

Agora, saudade dói, dói, dói.


***


Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015) e Piolhos (2016), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).


Vinícius Ribeiro, artista. Começou a desenhar desde a mais tenra idade e nunca mais parou. Atualmente, estuda Artes Visuais na Universidade Estadual de Montes Claros. Colabora periodicamente como ilustrador para O Salto, além de ser autor do blog pessoal Pensamento Ilustrado (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)

2 comentários:

  1. Obrigado. Muito obrigado a vocês, Douglas e Vinícius, por me ajudarem a divulgar meu trabalho.

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  2. história tocante,me faz lembrar algumas realidades, lindo trabalho parabéns !

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