sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Diálogo onírico disforme: Surrealismo, por David Nascimento e Douglas de Oliveira Tomaz



Surrealismo?

David Nascimento:
Fugir ao irreal, incorporando os desejos inalcançáveis. Despertar de um sonho e poder gerá-lo visualmente, proporcionando a busca por novas fantasias. Adormecer, visitar Sigmund Freud em uma cidade chamada clímax, onde os habitantes só se masturbam. Comer um bolo de gozo feito por gafanhotos azuis no purgatório e prosseguir roendo pequis coloridos, que nunca são gastos para a não-existência de espinhos. Dialogar com o inconsciente.

Douglas de Oliveira Tomaz:
Sim, surrealismo, ou sonho, paredes transpostas, rinocerontes em piscinas, corrida para pular na corrida para pular na corrida para pular. Livro que se abre e dá em árvore, em nuvem, nuvem que dá em diamante colorido, Clube da Esquina, Minas Gerais de alguns meses, hoje, hoje, palavras brotando do hoje regadas pela mente de agora, acumulada pelo ontem e pelos anteontens. Surrealismo mistério diário ao acordar pela manhã. Tentativa vã de domar o inconsciente com palavra. Talvez por isso não consigamos lembrar nossos sonhos, em muitas vezes, porque sua linguagem ultrapassa palavra, ultrapassa a lógica consciente da narração, coesão & coerência.  Ultrapassa, inclusive, a tentativa de lembrança, porque lembrança tá na parte segura, terra firme, o consciente está minado por cercas.

David:
Inserir o surrealismo na minha arte é automático. Busco por símbolos e, de forma atrativa, eles se ajeitam na parede úmida dos meus devaneios, esperando o ato de produção. Acabam se transformando em características e são fixados em durações, caso o tal ato demore acontecer. Dalí teve Gala, gavetas, formigas, relógios de Gorgonzola, elefantes, girafas em chamas e pães gigantescos. Tornaram-se marcas de seus períodos. Eu tenho olhos, seios, pênis, vaginas, o erotismo em um só ciclo, atual e sem previsão de término. Tudo atiçado no inconsciente. Frutos de minhas fugas. Vinculadas às motivações pessoais.

Douglas:
Talvez eu nunca incorpore o surrealismo plenamente em minha literatura. Digo ser impossível, por hora, essa incorporação plena, porque, enquanto escritor zumbi rastejante, ainda me preocupo com uma estética tradicional. Conseguirei produzir surrealismo quando essa preocupação não mais existir, quando for só eu e o papel e minha inconsciência, sem revisões, sem preocupação com a repetição de palavras, com a falta de ritmo, com a “ortografia errada”. Conseguirei produzir surrealismo quando a consciência deixar de existir, domadora implacável e chata. Há um tempo, tento, através da escrita, narrar/descrever sonhos importantes; e, abobado, tenho percebido que meu inconsciente é lógico, ou, se não chega a tanto, possui uma organização caótica que ainda desconheço, mas que existe. Percebo a repetição de símbolos, de significados e sentidos nos meus sonhos, como se se comunicassem, ou morassem num mesmo canto onde a conversa acontece sempre fluida. Nas últimas semanas, tenho levado essa tentativa um pouco mais a sério. Escrevi L. e o canal que se expande  a partir de um sonho. Na verdade, é narrativa toda sonhada. Estou adorando esse movimento de diluir paredes e não me preocupar com o de-sen-ca-de-a-men-to dos fatos. Fatos não precisam se desencadear. Podem nascer de si mesmos, sem qualquer relação com a anterioridade. Coincidentemente, estou lendo dois livros também oníricos: O livro dos sonhos, do Jack Kerouac, em que ele literalmente cospe fora seus sonhos após acordar, do jeitinho que eles vêm à mente, e A céu aberto, do João Gilberto Noll, autor contemporâneo brasileiro, que é um romance sem intervalos, sem divisão por capítulos, um fôlego só, pedrada: um fato, ou sonho, vai levando a outro, que leva a outro, que leva a outro e assim vai, parece que sem fim, embora o livro acabe em algum momento – ou  não. Tento aprender com eles. Quando leio também produzo literatura – no inconsciente.

David:
Como não ser influenciado por um indivíduo que eu admire? A literatura que o Douglas concebe é o que eu estava buscando há algum tempo para poder me inspirar, mas as referências anteriores foram todas distantes. Estou podendo acompanhar, absorver do seu processo criativo, e de perto. É como se alguém sonhasse por mim através da escrita, sugerindo o que fabricar. Então posso regressar, tentar propor de volta. A influência se dá na parte eufórica da minha psique, onde posso pressupor através da leitura de suas obras. Está me ajudando no processo de fortalecimento das temáticas, transcendendo o pensamento ‘’normal’’ e abortando a razão.

Douglas:
Desde que conheci a obra surrealista de David, tenho detonado as paredes da minha literatura com dinamites. Conversando com Edson Lopes, outro dia, ele falou em “literatura positiva”, de positivismo mesmo, e gostei do termo, gostei porque tenho tentado me distanciar cada vez mais dela e a obra do David tem me ajudado neste sentido. Olhos na testa, nos seios, seios no nariz, dedos em todos os lugares, pênis desmembrados, rabiscos, rabiscos soltos e livres, de cinco minutos, como ele diz: não há como não sair transformado desse contato. E essa transformação, claro, reflete-se na escrita, porque a escrita é a consequência desse liquidificador ligado que gira vivendo. David é gênio. Um gênio modesto.

De Douglas para David: você utilizou sangue próprio em algumas de suas obras. Sangue é surrealista?

O sangue, hoje, se estendeu em técnica, mas comecei a utilizá-lo em minhas obras como consequência de um sonho que tive. E só é surrealista, porque eu o converto para. Digo, minha obra o converte, com o que ela carrega.

De David para Douglas: quando começou a escrever, já fazia planos de seguir carreira? Consegue se lembrar do primeiro ato literário?

Importante saber que ainda não tenho carreira, estou buscando caminhos. Mas a certeza temporária de que a literatura é o sentido da minha vida existe e está, por enquanto, bem nítida. Quando comecei a escrever, o sentido de “carreira” ainda não estava formado em minha cabeça, ainda bem – preferiria que ele nunca tivesse se formado. A escrita começou com o teatro na infância, como membro do grupo Metralhas, dirigido pelo Roberto Neves, porque como herança deste período,  recebi o contato com o texto teatral. Lembro que escrevi minha primeira peça aos onze anos, para a escola: era sobre folclore, tinha apenas uma página frente e verso e havia sido escrita à mão. Continuei escrevendo peças de teatro para a escola até os quinze, aproximadamente, quando me descobri criando outros tipos de textos, como contos e crônicas, a partir de motivações particulares, sem qualquer demanda externa. Com dezesseis, escrevi um conto pequeno, chamado Um segundo, o primeiro que me despertou para algum sentido de literatura. Havia um conceito nele, uma estética, um uso racional e subjetivo de palavras, mesmo que raso, algum sentimento impregnado. O despertador tocou ali, mas só um ano depois comecei a escrever compulsivamente, todos os dias. Os textos eram ruins, mas o incômodo-dor-coceira-ânsia-perturbação-susto que motiva o texto é o mesmo desde aquele tempo e enquanto existir, vivo.  Viveremos.
  


- trabalhos do David Nascimento aqui.
- L. e o canal que se expande, de Douglas de Oliveira Tomaz, aqui. 

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