segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Três escritoras, por Brenda K. Souza


Escolher o que se lê parte, antes de tudo, de um reconhecimento. Elenquei aqui três escritoras com as quais me reconheço nas linhas, em suas modificadas formas. Lembro-me da menina que ao descobrir cada uma delas, acabava por se descobrir também. A seu modo, todas escrevem para salvar a si e alguém, e eu leio com essa mesma intenção.

Uma) Clarice Lispector

Louca, hermética, mística, genial, inovadora: adjetivos que perpassaram toda obra escrita de Clarice. De origem pobre, a jovem escritora judia de sotaque engraçado, causa espanto e admiração no cenário da literatura nacional com o lançamento do seu primeiro livro: Perto do coração selvagem. O romance antecederia as principais características das obras subsequentes, a principal delas, o rompimento da lógica cartesiana no romance. Introspectiva para aqueles que não a entenderam, a escritora dá lugar ao pensamento, ao fluxo, escrevendo apenas, como que para salvar a vida de alguém (sem compromissos com o cânone), talvez a dela, como viria a dizer.  Sua escrita é selvagem e convence apenas por ser; suas personagens, assim como sua criadora estão no limiar da descoberta, dos pequenos delitos, das fugas morais, na recriação do mundo e do próprio fazer literário. Em Clarice, biografia e obra se confundem, se misturam, a confissão impregnada nas personagens em terceira pessoa traz em seu cerne um naco grande de carne e essência da escritora, talvez, por isso, ela ficava oca quando terminava de escrever. A palavra para ela é além, é corpórea, matéria vertente, água em fluxo corrente. 

sim, quero a palavra última que também é tão primeira que já se confunde com a parte intangível do real. Ainda tenho medo de afastar da lógica porque caio no instintivo e no direto (...). Que mal porém tem eu me afastar da lógica? Estou lidando com matéria- prima.

Em entrevista ela confirmou minha expectativa ao dizer que para entendê-la era preciso, antes de tudo, sentir, de nada adiantavam as teorias, ela escapava e escapa a qualquer conceituação de gênero. Eu sinto.

Duas) Ana Cristina César

Outra mulher que também causaria reboliço algumas décadas mais tarde, era a carioca Ana C. César. A sua experiência com a escrita começou muito cedo, segundo a mãe, desde pequena, antes mesmo de conhecer os signos escritos, ela ditava e pedia que escrevesse; em suas primeiras publicações há textos produzidos aos 16 anos apenas. Conhecida por ter feito parte da chamada geração mimeógrafo, César teve a maioria de suas publicações desvinculadas de editoras, pois dedicava-se a uma produção artesanal, acessível ao leitor, marginal. Escrita em tom confessional, a poesia de Ana convida a um mergulho na própria identidade, na dela, na nossa. Sua palavra se articula de maneira simples, esvoaçante, descompromissada com regras de sintaxe. A escritora também segue um fluxo, o da confissão, por esse motivo torna-se tênue a linha entre o que é ficção e o que é real; tudo é mentira, tudo tem vias de ser verdade. A intimidade dos textos é atordoante, Ana salta das páginas e mostra ao leitor a janela do texto de onde viria a pular em outubro de 83, escrever é premunir, ler é testemunhar essa poética felina livre, que salta despreocupadamente.

Localizaste o tempo e o espaço no discurso/que não se gatografa impunemente./É ilusório pensar que restam dúvidas/e repetir o pedido imediato./O nome morto vira lápide,/falsa impressão de eternidade./Nem mesmo o cio exterior escapa/à presa discursiva que não sabe. Nem mesmo o gosto frio de cerveja no teu corpo/se localiza solto na grafia./Por mais que se gastem sete vidas/a pressa do discurso recomeça a recontá-las fixamente, sem denúncia/ gatográfica que a salte e cale.

Três) Marjane Satrapi

Ainda buscando relacionar biografia e autora, destaco por último, mas não menos importante, a escritora iraniana Marjane Satrapi. Escrever, criar, é também e sempre um ato político. A escritora e desenhista emerge com uma proposta diferente de contar, de confessar e de estimular atitudes “transgressoras” frente a um regime autoritário e violento. Em seu primeiro livro, Persépolis, escrito e ilustrado através de quadrinhos, a autora relata sobre sua infância até a vida adulta permeada por fatores como política, comportamento, construção de identidade, preconceito e questões que perpassam a vida de qualquer mulher durante seu desenvolvimento. O “universo feminino” tratado no livro vai desde as lembranças das mulheres mais velhas da família a posicionamentos frente à opressão vivida tanto no oriente quanto no ocidente, opressão essa que impõe padrões de comportamento a meninas e mulheres e pune direta ou indiretamente quem não os segue.



Nenhum comentário:

Postar um comentário