sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Caos-base


O que eu queria, na verdade, era ir para o mato, para o remoto e, até para a morte, para esquecer o passado recente. Há um tolo em mim. Ele aguenta, mesmo que trema de ânsia de abandonar tudo, mesmo agora, sem trema, ele aguenta. A gente não prevê o futuro. Depois culpa o país, o governo e sua má administração em desapreço às promessas de campanha. Quando Pandora parece ter trocado sua caixa de pegadinhas pela bolsa de valores. Tudo bem mal.

Chego ao mato, sem gato e sem cachorro. Espero melhoras para estes dias doentes. Sempre fui severinamente forte ante as piores situações. Porém, dói ver tanta gente no mesmo pau-de-arara. Dói ver tantas expressões inexpressivas de quem sofre e força alegria, a ignorar a tempestade que circula em torno de si.

Lembro-me de quando eu era pequeno. Era assim também. Na época da falta de chuva, eu costumava ouvir minha avó, meu colo vespertino, a me balançar e cantar uma canção cristã: Chuva de graça/, Chuva pedimos, Senhor/, Manda-nos chuva constante/. Chuva do consolador/. Minha avó, transformadora do abstrato espírito em concreto, já à beira dos seus cem anos, viciada em mascar o fumo preto que preservava seus pouquíssimos cacos de dentes apodrecidos, quando não a própria folha verde que secava na chapa aquentada pelo borralho da fornalha na cozinha. Além disso, o gosto por pimenta-de-macaco na comida, a qual tinha o mesmo efeito do elixir do Fu Manchu, lido, relido e sonhado por mim nas revistas do Shang-Chi, o Mestre do Kung-Fu.

E a molecada da infância? Valtinho, Serginho, Chapinha, Mr. Satã e outros, além de mim, rabiscando o sol quando as ruas encascalhadas e cheias de buraco eram a mais pura enxurrada em qualquer canto onde carvão e pedaços de toá pudessem se transformar em imagem. Da época das enchentes, memorizo minha mãe rezar para parar de chover: Santa Clara, clareia/, São Domingo, ilumeia/, Sai, chuva, vem, sol/, Enxugar o meu lençol/!

O que quero, o que todo mundo quer, faz a graça do sorriso parecer forçado. Cachaça que não entorpece o pensamento a minar o cérebro. A fuga intensa intencional dos problemas é só desejo. A ótica de que sem problemas não há solução é, provavelmente, tão prática quanto morrer de dor de dente ou de uma dose de cicuta. Quem disse que a maldita crise é oportunidade de crescimento? Crise na infância, na juventude, na velhice. Crise no palácio, nas casas, nos barracos da favela, nas fazendas e taperas do sertão. Crise nas indústrias, nos supermercados, nas mesas do consumidor consumido pelo caos de cada dia.

De súbito, costumam aparecer um ladrão e outro para nos roubarem, enquanto buscamos, jamais distraídos, algum remédio ou ao menos um remendo para a situação. Partido: metáfora do homem que rasgou a bandeira da autocrítica. Ainda que com tantos pesares, é inegável dizer que a vida, cachorra lesa, ilesa por milagre do aborto, a vida, primeiro e último suspiro de todos aqui, só não vale a pena para quem não tem alma nenhuma. Não me subscrevo, mas pago a conta, em suaves e/ou se incontáveis, as prestações.

***

Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).


Ilustração: Vinícius Ribeiro.

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