O cão abre alas do
mundo quando vê a enorme escavadeira passar na rua, um automóvel realmente além
de barulhento. Há uma fresta quase no alto do muro por onde o animal aprendeu a
saltar. Preciso consertá-la, mas ando desanimado demais. Prefiro me perder em
inércia e pensamentos vãos. Para justificar o meu ócio, escrevo. Em prosa. Ando
meio avesso aos versos. Há poucos dias, dei uma injeção contra carrapatos em
Teimoso. O nome dele. Do cão. Ele não tem muito estilo de brabo, só que faz
muito barulho ao aproximar de alguém em quem nunca pôs os olhos. Acho que seria
capaz de morder um desavisado. Devia entender: ao pular o muro, cairá em
terreno cheio de mato e de carrapato. Muitos carrapatos.
Por esses dias, Teimoso
tentou o tempo todo cruzar com a cadela, a pequena Lili. Mas, por mais que
tente, seu pênis não chega à vagina da cachorrinha. Ele a perturba com tamanha
insistência, sem conseguir cruzar. Ela se estressa e o agride. Ontem, no
quintal, achei umas penas verdes. Eram de uma maritaca. Muitas penas. E sangue.
Deu-me pena. Teimoso ou Lili devem tê-la pego. Às vezes capturam e comem algum
passarinho. Sinto-me entediado o bastante para achar que escrever não é tão
essencial, pelo menos por enquanto. Queria um cigarro, mas não fumo há bem
tempo. Razões para não recomeçar não faltam. Saudade nenhuma de quando tive
tuberculose. Queria beber. Mais tarde, talvez.
Confiro uma mensagem no
celular. É de Vanessa. Diz que virá aqui. Saio e a espero, debaixo da árvore,
na porta de casa. E vem, de fato. Empresto-lhe O Pêndulo de Foucault, do Umberto Eco, e, já aviso que, às vezes, o
livro é monótono, de uma temática complicada. Ela diz que o intelecto precisa
ser exercitado, mesmo se forçá-lo liberar um bocejo e outro. Vanessa lê tantos
livros! Exageradamente! Para quê ler tantos livros? Ela ainda mora na H. E.,
naquela casa onde também morei. Traz, para mim, algumas goiabas com polpa
vermelha. Adoro! Traz ainda as mesmas reclamações que eu fazia da proprietária,
dona Clemência, senhora que beirava seus 80 e poucos anos de vivência, a qual
sempre me pedia para fazer reparos na casa, porém se recusava a que eu fizesse
descontos do valor gasto por mim no aluguel.
Vanessa tem uma voz
doce, terna, rumor manso de rio, diria algum poeta. Rio por dentro de ela falar
dos pardais, tentando impostar raiva na voz. “Não consigo captar nenhuma nota
de raiva em sua voz.” Se eu fosse cego, ficaria apaixonado, não que Vanessa não
me atraia aparentemente; quem sabe enxergasse o amor na escuridão ou ficasse no
mínimo quedo sentimentalmente. “Cantam de manhã, bem cedo, à tarde, à noite.
Aliás, dizer que cantam é um eufemismo. Grasnam, timidamente.” Ela diz. “Li em
algum livro de História que eles vieram com os portugueses, em galeras, em
1922.” Opino. Mania de tentar fazer mágica intelectual e tirar algum
conhecimento da cachola na tentativa de impressionar. Ela ri. Um riso bastante
gostoso. Os óculos pequenos tentam em vão delimitar os olhos grandes e
profundos na face mulata, uma boca repleta de carne, cheia de dentes bastante
brancos. Tem um corpo quase perfeito que, sem ser totalmente perfeito, é
adorável.
“Além do idioma, grande
contribuição. Coçam pra caramba!” O comentário dela remonta à época em que pichilingas me proporcionaram uma
alergia e me encheram de bolhas vermelhas, pensei que fosse herpes, enquanto
minha namorada, Márcia, naquele entretanto, pedia-me um tempo, prognosticava-me
cirrose. “Moço, moço, você morre e a cachaça fica aí.”
Vanessa só fala
praticamente da mesma coisa. De livros e de seus autores preferidos. Mas de livros
em prosa. Diz que poesia é chata e exige pouco esforço de quem as produz. Não
retruco, apesar da vontade. Penso que as mulheres adoram discutir e a melhor
forma de fazê-las felizes é deixar que deem a última palavra.
Visualizo mentalmente a
casa H. E., quando Vanessa se vai. Não gostava de lá. Pouco espaço. Paredes de
um amarelo esmaecido. Canos a vazar. Frestas em todo canto. Janelas de madeira,
com travas. A mínima possibilidade de cultivar plantas, um de meus hobbies. De
dona Clemência ouvi dizerem que anda doente e infeliz, depois que o cão vigia
de seu quintal morreu ao comer um rato moribundo envenenado. Casa velha tem
dessas coisas. O buraco, no muro prestes a cair, onde, Feroz, era assim que ela
chamava o cão, enfiava as patas fortes ou o focinho e, de lá, tirava qualquer
bicho, incauto, que entrasse, estraçalhando-o com sua mordida fatal.
Olho Vanessa se
afastar. Gosto de seu jeito de caminhar, balançando os quadris. Penso na Garota de Ipanema e não há som in off, mas viajo no tom clássico do Jobim.
Adentro meu exílio. “Areia demais para meu caminhãozinho!” Digo a mim mesmo,
depois de olhadela derradeira pela fresta do muro, por onde meu cão costuma
pular. O sol da tarde castiga.
***
Edson
Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi
professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e
autor dos livros Alice no país da mesmice
(2000), Historinhas integrais em prosa e
verso (2015), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).
Ilustração:
Vinícius Ribeiro.
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