Não
que tenha estudado muito. Uma olhada ali, outra acolá, em textos mais
literários que em técnicos. Se houvesse doenças chamadas didaticofobia ou estruturofobia,
se seus sintomas, persistindo, pudessem levar o enfermo à morte, eu já teria
dito alguma frase de efeito a quem é par ou ímpar para mim. Certamente, usaria
uma frase de efeito. Já ouvi que é muito “clean”. Achei lindo, e, para
compensar quem falou, dei-lhe um sorriso, como se tivesse entendido. Eureca! Eu
diria: Goodbye forever, friends of my
heart! Que se exalasse meu último suspiro! Eu descansaria eternamente num
berço de pleonasmo esplêndido. Não digo que tenha estudado muito. Mas foi um
domingo inteiro jogado a algo muito pior que as traças convencionais dos meus
fins de semana solucionar aquela prova. Alguns meses se passaram. Passei.
Alguns candidatos, aos poucos, foram nomeados. Demorou, mas fui nomeado também.
Meus colegas me felicitaram, sorridentes: “Parabéns! Seu nome foi publicado!”
Entre
as várias coisas às quais sou avesso mora a necessidade de ir a hospital, de me
defrontar com médico(a). Mais uma fobia: a de ficar doente. Na minha profissão,
penso, devia ser proibido adoecer. Parodio, neste instante, algo do póstumo
memorável Drummond acerca das mães: Fosse
eu rei do mundo, baixava uma lei: Professor
não adoece nunca! Empurrar com a barriga e uma dor de estômago
considerada ocasionalmente leve vira uma úlcera. Uma tosse renitente seguida de
inocentes insólitos escarros rubros despercebidos levam um infeliz ao estágio
de pneumotórax.
Abomino
ter de jogar fora os parabéns que me são dados por alguma vitória. No meio
docente o eco de uma frase repercute no cérebro de qualquer humano que usa apenas
dez por cento de sua cabeça animal. 1.1.: louros! 1.1.: orgulho! 1.3.: desdém!
“A prova fora tão fácil! Não sei como tão poucos candidatos conseguem passar.
Eta povo burro!” Falas de meu amigo, o Moura.
Faz
um bom tempo que para candidatos a cargos de professores aprovados em
concursos, nomeados, possam tomar posse dos devidos, pedem-se exames de urina,
sangue, pulmão, coração e, principalmente, de garganta. Em seguida, a perícia.
Não queria usar este verbo no pretérito imperfeito, mesmo sendo o texto aqui
uma pretensa crônica. O nome crônica fora do contexto de gênero literário me
lembra um sinônimo de grande expressão ao que eu sentia então, mais de alma que
de corpo: doença incurável! Et voila: era mês de julho, quase fim de
recesso. Eu terminava alguns exames e era considerado apto em todos por alguns
médicos. De urina, de sangue, de pulmão, de pressão. Restou-me fazer o de
garganta.
Fazia
frio. Eu me sentia cansado. O dia anterior fora difícil. Eu havia falado muito
alto, em sala de aula, para tentar fazer alguns conceitos gramaticais,
morfossintáticos, pelo menos parecerem chegar aos alunos do turno da tarde. À
noite, no cursinho pré-vestibular, uma voz alta costuma ser imprescindível.
Seguinte: pulo a recepção, a ficha, sento-me na cadeira do consultório do
doutor. “Bom dia.” Pigarreio. Ele me olha atravessado, coloca uns óculos de
lentes muito, muito claras. Lê minha ficha. “Você acha que sua garganta não tem
nenhum problema, professor?” Desde aí, tive a impressão de que o otorrinolaringologista trabalhava árduo
para provar que os profissionais de educação aprovados em concurso são roucos.
O
doutor me pediu que segurasse a carteira de identidade apertada contra o peito
com as duas mãos, faltou pedir para que eu sorrisse por estar sendo filmado. Eu
estava mesmo, conferi-o, ao olhar minha face patética no televisor. Quando ele
colocou uma luva e começou a me pedir para dizer repetidamente algumas vogais,
em tons, ora graves, ora agudos, vogais de sons, ora abertos, ora fechados,
senti parte da privacidade de meu corpo invadida totalmente – o céu ou inferno
de minha boca. “É, professor, a coisa está feia.” E pelo vídeo me mostrou uma
fenda em minha garganta semelhante a, como todas as gargantas, a uma vagina.
Minha garganta, entretanto, sem o abre-fecha, fecha-abre, um fato comum à
maioria das gargantas.
Ouvi
como eu proferira pessimamente as vogais. Porém, o que mais me impressionava
era o ar de júbilo do médico que parecia ter transformado um preconceito em
conceito. Minha expressão inicialmente patética no vídeo pareceu dobrar de
intensidade com a decepção e esforço de segurar a identidade apertada contra o
peito a vocalizar com a língua presa. “A! I! E!” Parecia um meliante
recentemente iniciado no crime sendo fichado, incapaz de responder a um interrogatório.
O doutor escreveu algumas frases que não consegui ler em um pedaço de papel, e,
pelas suas falas me considerei inapto. Fiquei triste e pensei em desistir da
fatídica posse. Mas meus bons colegas de profissão me aconselharam a procurar
outro otorrinolaringologista para
fazer o mesmo exame.
Outro
consultório particular, a segunda reprovação da garganta fendida. Ao menos, de
tal vez, uma médica não me deu a carteira de identidade para segurar contra o
peito e não me senti com pose de presidiário. Complemento: não queria admitir
por ter ela me reprovado, mas foi muito educada no exercício de sua função.
Culminância da ideia: convencido por amigos, colegas de trabalho, pessoas que
torcem pelo meu bem-estar físico, social, espiritual, cultural, etc, fui ao
SEPLAG, em Montes Claros – MG, para a inspeção médica final.
Esclareço
que eu andava muito deprimido, cansado, tristonho. Lembranças das aulas de
Latim de meu finado professor Paulo Afonso: “Um homem sem anima, um homem des-anima-do,
um homem sem alma, um saco de
batatas.” Talvez seja a explicação de eu ter sentido um olhar de menosprezo dos
profissionais de medicina ali sobre mim. Reflexão inerente, digamos sem
importância, digamos desdenhosa em meu pensamento: “Médicos e advogados nem
tanto estudam para serem chamados de doutores.” Eles não têm mais o status
social de algum tempo, é o que atualmente se comenta. Acho que as pessoas criam
determinado biótipo (confundo com preconceito) para determinadas profissões,
algumas parecem adorar sentir em posição inferior outras às quais julgam
superar. Um dia, o poeta piauiense, José Renato, após eu lhe dizer que, certa
poeta me dissera que eu tinha cara de poeta, ele retrucou, entredentes: “Ela te
disse isso para fazer fita. Alguém deve ter falado isso a ela. Reprodução de um
discurso que a agradou. Fazer uma média. Por falar em média, pensei em dose. E,
para mim, você não tem cara de poeta. Tem cara de tomador de birita.”
Naquele
momento, qualquer exame que eu fosse fazer a voz enrouqueceria diante dos sujeitos
e sujeitas de vestimenta branca, por mais que tentasse a prosa do própolis. Não
adiantaram as cinco dúzias de maçãs comidas nos dias anteriores à perícia. Nem
as quatro maçãs comidas escondido no banheiro antes do exame. Eu tomara trauma
de expor minha garganta a médicos. Quando a fonoaudióloga perguntou no corredor
pelo meu nome, levantei e me senti reprovado pelo seu olhar. A voz emitida com
fones de ouvidos ligados ao computador parece repleta de vibrações defeituosas
sob o olhar da médica que, ei de convir, apesar do ar de desdém, é bem
atraente.
Depois,
teve um exame psicológico, umas perguntas – pegadinhas
– cheias de contradição, às quais tive de responder no computador. Ao fim,
fui reprovado mais uma vez por um médico, o qual me fez montanhas de perguntas,
sobre mim e minha família, perguntas sobre as quais não consegui mentir como me
haviam aconselhado a fazer os candidatos aos cargos de professor com quem eu
conversara. O doutor fez em mim alguns exames. Por fazer. A última do rol de
perguntas inúteis, feitas pelo médico que, penso, as fizera por protocolo e já
me reprovara no momento em que pisei no seu consultório foi: “Você é bravo a
ponto de se revoltar violentamente, quando lhe dão alguma notícia ruim?” A meu
mentiroso meneio de cabeça, entregou um certificado de INAPTO que destacou de
uma folha.
À
custo me contive para não agredi-lo verbalmente e fisicamente pela brincadeira
de mau-gosto de criar um abjeto momento de expectativa para o meu coração que
ali se sentia demais saturado. Como foi desoladora a volta de Montes Claros a
Buritizeiro. A frase: INAPTO! INAPTO! INAPTO! feito ritornelo de um poema
macabro na cabeça a explodir. Entrei com um recurso. Recebi a resposta ao
supracitado uns dois meses depois de enviado. O cruel adjetivo INAPTO! Pedi
aconselhamento ao setor jurídico do Sindicato dos Professores do Estado, mas os
procedimentos que fui orientado a buscar para a possibilidade de êxito me
desanimaram. Trabalhos de Hércules. Fora o trauma passado a sentir por médicos.
Gostaria de nunca mais ver um só em minha frente. Preciso de forças para
trabalhar, aposentar, pagar minha cova rasa, com esta garganta fendida. No
mais: paz e bem, bem ou mal!
***
Edson
Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi
professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e
autor dos livros Alice no país da mesmice
(2000), Historinhas integrais em prosa e
verso (2015), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).
Ilustrações:
Vinícius Ribeiro.
Mais uma vez a ilustração "arrebentou", Vinícius Ribeiro! Parabéns.
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