sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Frankenstein


Não que tenha estudado muito. Uma olhada ali, outra acolá, em textos mais literários que em técnicos. Se houvesse doenças chamadas didaticofobia ou estruturofobia, se seus sintomas, persistindo, pudessem levar o enfermo à morte, eu já teria dito alguma frase de efeito a quem é par ou ímpar para mim. Certamente, usaria uma frase de efeito. Já ouvi que é muito “clean”. Achei lindo, e, para compensar quem falou, dei-lhe um sorriso, como se tivesse entendido. Eureca! Eu diria: Goodbye forever, friends of my heart! Que se exalasse meu último suspiro! Eu descansaria eternamente num berço de pleonasmo esplêndido. Não digo que tenha estudado muito. Mas foi um domingo inteiro jogado a algo muito pior que as traças convencionais dos meus fins de semana solucionar aquela prova. Alguns meses se passaram. Passei. Alguns candidatos, aos poucos, foram nomeados. Demorou, mas fui nomeado também. Meus colegas me felicitaram, sorridentes: “Parabéns! Seu nome foi publicado!”

Entre as várias coisas às quais sou avesso mora a necessidade de ir a hospital, de me defrontar com médico(a). Mais uma fobia: a de ficar doente. Na minha profissão, penso, devia ser proibido adoecer. Parodio, neste instante, algo do póstumo memorável Drummond acerca das mães: Fosse eu rei do mundo, baixava uma lei: Professor não adoece nunca! Empurrar com a barriga e uma dor de estômago considerada ocasionalmente leve vira uma úlcera. Uma tosse renitente seguida de inocentes insólitos escarros rubros despercebidos levam um infeliz ao estágio de pneumotórax.

Abomino ter de jogar fora os parabéns que me são dados por alguma vitória. No meio docente o eco de uma frase repercute no cérebro de qualquer humano que usa apenas dez por cento de sua cabeça animal. 1.1.: louros! 1.1.: orgulho! 1.3.: desdém! “A prova fora tão fácil! Não sei como tão poucos candidatos conseguem passar. Eta povo burro!” Falas de meu amigo, o Moura.

Faz um bom tempo que para candidatos a cargos de professores aprovados em concursos, nomeados, possam tomar posse dos devidos, pedem-se exames de urina, sangue, pulmão, coração e, principalmente, de garganta. Em seguida, a perícia. Não queria usar este verbo no pretérito imperfeito, mesmo sendo o texto aqui uma pretensa crônica. O nome crônica fora do contexto de gênero literário me lembra um sinônimo de grande expressão ao que eu sentia então, mais de alma que de corpo: doença incurável! Et voila: era mês de julho, quase fim de recesso. Eu terminava alguns exames e era considerado apto em todos por alguns médicos. De urina, de sangue, de pulmão, de pressão. Restou-me fazer o de garganta.

Fazia frio. Eu me sentia cansado. O dia anterior fora difícil. Eu havia falado muito alto, em sala de aula, para tentar fazer alguns conceitos gramaticais, morfossintáticos, pelo menos parecerem chegar aos alunos do turno da tarde. À noite, no cursinho pré-vestibular, uma voz alta costuma ser imprescindível. Seguinte: pulo a recepção, a ficha, sento-me na cadeira do consultório do doutor. “Bom dia.” Pigarreio. Ele me olha atravessado, coloca uns óculos de lentes muito, muito claras. Lê minha ficha. “Você acha que sua garganta não tem nenhum problema, professor?” Desde aí, tive a impressão de que o otorrinolaringologista trabalhava árduo para provar que os profissionais de educação aprovados em concurso são roucos.

O doutor me pediu que segurasse a carteira de identidade apertada contra o peito com as duas mãos, faltou pedir para que eu sorrisse por estar sendo filmado. Eu estava mesmo, conferi-o, ao olhar minha face patética no televisor. Quando ele colocou uma luva e começou a me pedir para dizer repetidamente algumas vogais, em tons, ora graves, ora agudos, vogais de sons, ora abertos, ora fechados, senti parte da privacidade de meu corpo invadida totalmente – o céu ou inferno de minha boca. “É, professor, a coisa está feia.” E pelo vídeo me mostrou uma fenda em minha garganta semelhante a, como todas as gargantas, a uma vagina. Minha garganta, entretanto, sem o abre-fecha, fecha-abre, um fato comum à maioria das gargantas.

Ouvi como eu proferira pessimamente as vogais. Porém, o que mais me impressionava era o ar de júbilo do médico que parecia ter transformado um preconceito em conceito. Minha expressão inicialmente patética no vídeo pareceu dobrar de intensidade com a decepção e esforço de segurar a identidade apertada contra o peito a vocalizar com a língua presa. “A! I! E!” Parecia um meliante recentemente iniciado no crime sendo fichado, incapaz de responder a um interrogatório. O doutor escreveu algumas frases que não consegui ler em um pedaço de papel, e, pelas suas falas me considerei inapto. Fiquei triste e pensei em desistir da fatídica posse. Mas meus bons colegas de profissão me aconselharam a procurar outro otorrinolaringologista para fazer o mesmo exame.

Outro consultório particular, a segunda reprovação da garganta fendida. Ao menos, de tal vez, uma médica não me deu a carteira de identidade para segurar contra o peito e não me senti com pose de presidiário. Complemento: não queria admitir por ter ela me reprovado, mas foi muito educada no exercício de sua função. Culminância da ideia: convencido por amigos, colegas de trabalho, pessoas que torcem pelo meu bem-estar físico, social, espiritual, cultural, etc, fui ao SEPLAG, em Montes Claros – MG, para a inspeção médica final.

Esclareço que eu andava muito deprimido, cansado, tristonho. Lembranças das aulas de Latim de meu finado professor Paulo Afonso: “Um homem sem anima, um homem des-anima-do, um homem sem alma, um saco de batatas.” Talvez seja a explicação de eu ter sentido um olhar de menosprezo dos profissionais de medicina ali sobre mim. Reflexão inerente, digamos sem importância, digamos desdenhosa em meu pensamento: “Médicos e advogados nem tanto estudam para serem chamados de doutores.” Eles não têm mais o status social de algum tempo, é o que atualmente se comenta. Acho que as pessoas criam determinado biótipo (confundo com preconceito) para determinadas profissões, algumas parecem adorar sentir em posição inferior outras às quais julgam superar. Um dia, o poeta piauiense, José Renato, após eu lhe dizer que, certa poeta me dissera que eu tinha cara de poeta, ele retrucou, entredentes: “Ela te disse isso para fazer fita. Alguém deve ter falado isso a ela. Reprodução de um discurso que a agradou. Fazer uma média. Por falar em média, pensei em dose. E, para mim, você não tem cara de poeta. Tem cara de tomador de birita.”

Naquele momento, qualquer exame que eu fosse fazer a voz enrouqueceria diante dos sujeitos e sujeitas de vestimenta branca, por mais que tentasse a prosa do própolis. Não adiantaram as cinco dúzias de maçãs comidas nos dias anteriores à perícia. Nem as quatro maçãs comidas escondido no banheiro antes do exame. Eu tomara trauma de expor minha garganta a médicos. Quando a fonoaudióloga perguntou no corredor pelo meu nome, levantei e me senti reprovado pelo seu olhar. A voz emitida com fones de ouvidos ligados ao computador parece repleta de vibrações defeituosas sob o olhar da médica que, ei de convir, apesar do ar de desdém, é bem atraente.

Depois, teve um exame psicológico, umas perguntas – pegadinhas – cheias de contradição, às quais tive de responder no computador. Ao fim, fui reprovado mais uma vez por um médico, o qual me fez montanhas de perguntas, sobre mim e minha família, perguntas sobre as quais não consegui mentir como me haviam aconselhado a fazer os candidatos aos cargos de professor com quem eu conversara. O doutor fez em mim alguns exames. Por fazer. A última do rol de perguntas inúteis, feitas pelo médico que, penso, as fizera por protocolo e já me reprovara no momento em que pisei no seu consultório foi: “Você é bravo a ponto de se revoltar violentamente, quando lhe dão alguma notícia ruim?” A meu mentiroso meneio de cabeça, entregou um certificado de INAPTO que destacou de uma folha.

À custo me contive para não agredi-lo verbalmente e fisicamente pela brincadeira de mau-gosto de criar um abjeto momento de expectativa para o meu coração que ali se sentia demais saturado. Como foi desoladora a volta de Montes Claros a Buritizeiro. A frase: INAPTO! INAPTO! INAPTO! feito ritornelo de um poema macabro na cabeça a explodir. Entrei com um recurso. Recebi a resposta ao supracitado uns dois meses depois de enviado. O cruel adjetivo INAPTO! Pedi aconselhamento ao setor jurídico do Sindicato dos Professores do Estado, mas os procedimentos que fui orientado a buscar para a possibilidade de êxito me desanimaram. Trabalhos de Hércules. Fora o trauma passado a sentir por médicos. Gostaria de nunca mais ver um só em minha frente. Preciso de forças para trabalhar, aposentar, pagar minha cova rasa, com esta garganta fendida. No mais: paz e bem, bem ou mal!


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Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).


Ilustrações: Vinícius Ribeiro.

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