terça-feira, 24 de novembro de 2015

Chão


O filho mais velho voltou para casa, mãe já não estava. Os filhos mais novos cuidavam de tudo: limpavam, cozinhavam, criavam o rumo do resto. O filho mais velho entrou pela casa com olhos assustados – susto inadmitido –, olhos assustados de quem entra num lugar novo, onde nunca tinha pisado. Parecia criança em loja de brinquedo, mas triste. Os filhos mais novos trataram-no com naturalidade, era o combinado tácito, sem acordo verbal ou escrito. Todos entendiam que ele, distante desde que não havia mais mãe, carecia deste novo pisar na velha casa: todos agora precisam reconhecer-se.  

Caetano cantava que amanhã será um lindo dia da mais louca alegria, Caetano cantava e os filhos mais novos faziam comida, enquanto o filho mais velho percebia que os móveis já não estavam no mesmo lugar, paredes estavam pintadas de outra cor, o cheiro da comida mudara e havia flores espalhadas pela casa, como nunca houve. Só o azulejo do chão continuava o mesmo, e o chão, permanente como a dor que não passa, era o grande deus que anunciava a mudança: embora tudo se modifique, pise. Pisar é uma necessidade.

Os filhos mais novos, enquanto cozinhavam e conversavam banalidades para disfarçar o susto do outro, observavam o filho mais velho e lembravam-se – todos ao mesmo tempo, mesmo sem saber, família que eram – lembravam-se do momento em que pisaram os seus pés, pela primeira vez após tudo, naquela casa de ontem. Todos se doíam, porque lembrança de morte dói, mas era preciso manter firmeza: a hora era de o filho mais velho chegar, ninguém mais.

Ele andava pela casa, fingindo que já a conhecia, afinal vivera por ali todos aqueles anos e nada mudara, nada mudara – chão gritava. Perguntou dos outros filhos, os do meio, onde estava Cícero? desfez casamento; e compadre João Neto? está construindo; e Bia? agora arranjou emprego em dois turnos. O agora era uma presença que o torturava. Mas fingia estar bem, caminhava pela casa.

Até que, na sala, um pedaço quebrado do azulejo jogou-o no chão. Os filhos mais novos, na cozinha, não viram: distraíam-se com a cebola, o refogado e a saudade. O filho mais velho não se levantou da queda, manteve sua cabeça baixa, as mãos tocando o chão que, enfim descobrira, apesar de igual, já não era o mesmo, como as paredes, a disposição dos móveis e tudo. A casa mudara. O homem caído preparou na face o choro, que não era dor de tropeço. Insistente, Caetano dizia que amanhã será um lindo dia e o filho mais velho, deixando cair lágrima seca, completava a letra da música, sem melodia, sem graça, ilustrando com seu corpo, na posição em que se prostrava, o reverso, a força contrária à felicidade que há: hoje não, hoje não será.


***


Douglas de Oliveira Tomaz, nascido em 1993, é autor do blog pessoal www.abrigosdevagabundo.blogspot.com.br, recebeu uma menção honrosa no concurso literário do Clube de Escritores de Ipatinga – MG (Clesi), edição 2013, e possui textos seus publicados pela Revista Jangada. Em 2015, lançou de modo artesanal seu primeiro livro de poemas: Escorre. Atualmente, reside em Pirapora - Minas Gerais.


Ilustração: Vinícius Ribeiro. 

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