O filho mais velho voltou para casa, mãe já não
estava. Os filhos mais novos cuidavam de tudo: limpavam, cozinhavam, criavam o
rumo do resto. O filho mais velho entrou pela casa com olhos assustados – susto
inadmitido –, olhos assustados de quem entra num lugar novo, onde nunca tinha
pisado. Parecia criança em loja de brinquedo, mas triste. Os filhos mais novos
trataram-no com naturalidade, era o combinado tácito, sem acordo verbal ou
escrito. Todos entendiam que ele, distante desde que não havia mais mãe, carecia
deste novo pisar na velha casa: todos agora precisam reconhecer-se.
Caetano
cantava que amanhã será um lindo dia da
mais louca alegria, Caetano cantava e os filhos mais novos faziam comida,
enquanto o filho mais velho percebia que os móveis já não estavam no mesmo
lugar, paredes estavam pintadas de outra cor, o cheiro da comida mudara e havia
flores espalhadas pela casa, como nunca houve. Só o azulejo do chão continuava
o mesmo, e o chão, permanente como a dor que não passa, era o grande deus que
anunciava a mudança: embora tudo se modifique, pise. Pisar é uma necessidade.
Os
filhos mais novos, enquanto cozinhavam e conversavam banalidades para disfarçar
o susto do outro, observavam o filho mais velho e lembravam-se – todos ao mesmo
tempo, mesmo sem saber, família que eram – lembravam-se do momento em que
pisaram os seus pés, pela primeira vez após tudo, naquela casa de ontem. Todos
se doíam, porque lembrança de morte dói, mas era preciso manter firmeza: a hora
era de o filho mais velho chegar, ninguém mais.
Ele
andava pela casa, fingindo que já a conhecia, afinal vivera por ali todos
aqueles anos e nada mudara, nada mudara – chão gritava. Perguntou dos outros
filhos, os do meio, onde estava Cícero? desfez casamento; e compadre João Neto?
está construindo; e Bia? agora arranjou emprego em dois turnos. O agora era uma presença que o torturava.
Mas fingia estar bem, caminhava pela casa.
Até
que, na sala, um pedaço quebrado do azulejo jogou-o no chão. Os filhos mais novos,
na cozinha, não viram: distraíam-se com a cebola, o refogado e a saudade. O
filho mais velho não se levantou da queda, manteve sua cabeça baixa, as mãos
tocando o chão que, enfim descobrira, apesar de igual, já não era o mesmo, como
as paredes, a disposição dos móveis e tudo. A casa mudara. O homem caído preparou
na face o choro, que não era dor de tropeço. Insistente, Caetano dizia que amanhã será um lindo dia e o filho mais
velho, deixando cair lágrima seca, completava a letra da música, sem melodia,
sem graça, ilustrando com seu corpo, na posição em que se prostrava, o reverso,
a força contrária à felicidade que há: hoje
não, hoje não será.
***
Douglas de
Oliveira Tomaz, nascido em 1993, é autor do blog
pessoal www.abrigosdevagabundo.blogspot.com.br,
recebeu uma menção honrosa no concurso literário do Clube de Escritores de
Ipatinga – MG (Clesi), edição 2013, e possui textos seus publicados pela Revista Jangada. Em 2015, lançou de modo
artesanal seu primeiro livro de poemas: Escorre.
Atualmente, reside em Pirapora - Minas Gerais.
Ilustração:
Vinícius Ribeiro.
Só amei!
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