sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

A barranqueira


Do rio que não é mais tão bonito, entretanto, ficam as falas do Paturi. Não sei onde ele arranjou esse apelido. Alguns dizem que foi em rodas de truco, que nelas perdeu tudo; e não pelo fato de viver mergulhado no Velho Chico, como a maioria imagina. “É dia e noite, é noite e dia.” Vaticinam. Às vezes o encontro à beira de um barranco. Gosto de pescar com varinha de bambu japonês. “Então, professor, pegou os mandis?” Tem hora que começa a desabafar, enche-se de histórias de uma Pirapora de tempos áureos. Corta a manhã, a tarde, até a Hora do Anjo, quando me impaciento com os maruins e me preparo para a volta para casa. “Aí, onde c. pesca, só tem piaba, mas já peguei surubim maior que homem mais grande e forte do que eu aí.”

Percebo alguns erros gramaticais na fala de Paturi. Surpreendo-me a gostar de ouvi-los. “É mesmo?” Eu me dirijo a ele com no máximo duas palavras. “Se não tivesse sido cabeça fraca, hoje, seria rico.” Baixa a cabeça e fecha os olhos castanhos avermelhados, arregalados, lacrimejantes. Não passa então de um garoto envergonhado, arrependido de uma arte: “Gastei tudo com baralho e mulher da zona. Uma vez peguei chato e gonorreia. Quase morro. Não procurei o médico e tentava matar os chato com Neocid e curar a gonorreia tomando garrafadas de pinga com raiz e Tetrex.”

Aí fala das casas noturnas, dos bares e quiosques, da paisagem de cidade antiga da época em que o trem não desistia de seu vir e ir e ir e vir. E ele vendo-o passar, cheio de gentes de vários cantos. Algumas afortunadas, provavelmente em vagões à parte, com certo luxo, outras azarentas, febrilmente amareladas, para emendar, num sentido cruelmente literal, personagens de Maleita, do Lúcio Cardoso. Gentes vivas. Gentes sobreviventes. Gentes que eram tiradas do trem antes de chegarem ao seu destino porque a vigilância sanitária previa sua morte, temia o contágio dos demais passageiros. Gentes desenganadas por engano aqui ficaram, deram ao Norte de Minas uma nova identidade perceptível no sotaque com mescla de Minas e Nordeste. Pinheiros em luta contra os desníveis dos barrancos. Nem tudo é dourado como o enorme e belo peixe não mais lugar-comum do Velho Chico.

“Hoje, tem bem mais pouca água.” Paturi se cala. O sol parece querer possuir de corpo e alma o chão, penetrá-lo, como fazem os pingos de chuva, a chuva que a gente espera quase a ponto de desespero. Minha alma se esvazia como o rio em que o ribeirinho deposita seus sonhos, o espaço se acinzenta. “Amanhã é dia de feira, Paturi, seu mergulhão em pinga. Fim de semana eu volto aqui para molhar as minhocas e prosearemos mais.”

A falta de água faz a gente atuar nos lares como em tempo de criança, quem sabe ao tempo que Paturi se refere com nostalgia. Encher vasilhames de água, tomar banho de balde. Eu reclamo do fornecedor de água, a mulher reclama do fornecedor de água, minha filha reclama do fornecedor de água. A cidade e todo o planeta devem reclamar do fornecedor de água. É quando banheiro para nada serve, toalete para nada serve. Espio a pia e o vaso. Penso que em meu tempo de criança palavras como banheiro e/ou toalete eram raras ao meu vocabulário. Época de privadas, construções de lajes com que são feitos os muros, no chão não havia vaso, mas um buraco, uma fossa para despejar os dejetos. Era muito incômodo não ter um vaso, ficar de cócoras para defecar.

Há mandis demais e prefiro não quebrar os seus esporões. Um deles, que vou destripar, me estrepa. Dói. Arde o ponto do dedo de onde um fio de sangue começa a brotar. O dedo incha. Arranco o olho do peixe e esfrego-o sobre o inchaço. Simpatia de pescador. O mandi produz um ruído baixo e estranho, se submetido a determinado estresse, no entanto, não consigo perceber dor na sua expressão, mesmo enquanto se debate e sangra. Pouca terminação nervosa: explica a Ciência. O olhar estúpido de em vida é o mesmo pós-morte.

Termino de tratar os peixes. Os moradores de Pirapora chamam os pequenos talhos que faço dos lados dos mandis, para temperá-los melhor, de ticar. “Retado! Peixe! Peixe! Peixe! Peixe! Nesta casa só se come peixe, oxe!” Não sei o porquê da aversão ao cheiro de peixe de minha mulher. “Papai! Há anus na horta! Parecem estar bicando os pés de couve!” Mariana grita, quando entro no banheiro e me molho, lentamente, com um copo de plástico, da água de um balde preto. “Pega manga aí no chão do quintal e joga neles só para espantar, filha!” Já é quase noite e faz um calor absurdo.


***


Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).


Ilustrações: Vinícius Ribeiro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário