domingo, 31 de janeiro de 2016

Sertão Urbano



Aqui no mato
Vai ocupando o concreto
Os bichos pastam
Onde há de haver mais prédios
Condomínios que prometem
O prazer do mato dentro da cidade
Mato dá prazer
Mato dá prazer
Mato dá prazer

- Salma Jô e Macloys (Carne Doce)


Mayana abre uma das sacolas repousadas no banco do carona, retira dois pacotinhos de jujuba, abre-os. Enfia na boca três jujubas de uma vez. Inspira, prende o ar por uns segundos, depois solta. Repete o movimento. Quando as três jujubas se dissolvem, repõe mais três: laranja, morango, uva. Inspira, prende, solta. Após repetir o ciclo respiratório por vinte vezes, já não cabem três jujubas na boca, apenas duas. O açúcar já começara a fechar sua garganta. Meditando, calcula que na sexagésima vez não haverá espaço para nenhuma. Nenhuma.

A buzina incessante dos veículos ao redor a retira do transe. Interrompe a meditação e, remexendo em outras sacolas, retira dois cedês recém-comprados. Duas bandas novas, totalmente desconhecidas. Abre com dificuldade o plástico do primeiro, retira o encarte, tenta ler as letras. Mas a buzina incessante. Desiste. Passa do lado de fora uma moto apressada que quase arranca seu retrovisor direito. Mayana inspira, prende o ar por uns segundos, depois solta. Retira o cedê, insere-o no som do carro. Deixa tocar a primeira música. Tenta acompanhar a letra. Sorri para alguns versos engraçadinhos. Após um minuto e uns segundos quebrados, retira o cedê, guarda-o no porta-luvas junto com o outro, ainda plastificado. Insere o pen-drive.

Interrompe as jujubas. Retira de outra sacola uma barra de chocolate branco. Destaca três gomos, mas, desta vez, espera o primeiro começar a se dissolver para ingerir o segundo. No fim do terceiro, bebe um longo gole d´agua. Está pronta para mais três gomos. Sem culpa.

Um homem calvo desce do carro parado à esquerda. Posiciona uma das mãos acima dos olhos, tenta alcançar o fim do congestionamento. Não alcança. Xinga, bate com a mesma mão em cima do capô, vai até o volante, aperta insistentemente a buzina. Xinga outra vez, desta vez mais alto, palavrão novo. Encosta na lateral, grita algo ao jovem sarado à frente, que já esperava do lado de fora. Os dois levantam os braços para o alto, como orangotangos.

No fim do sexto gomo de chocolate, após beber mais um gole d´agua, Mayana vê passar um cavalo branco encardido pelo lado direito. Repousa a garrafa no banco do carona, franze a testa, observa. Atrás do primeiro, surgem mais dois cavalos, um marrom e outro negro; passam correndo. Pelo lado esquerdo, surgem quatro: malhado, amarelo, marrom de tom mais escuro e outro de tom mais claro. O homem calvo e o jovem sarado interrompem a discussão e entram assustados nos carros. Fecham os vidros.

Os cavalos costuram o trânsito congestionado. Alguns param, encostam seus focinhos nos vidros, assombram as pessoas, depois saem. Outros parecem perdidos: correm, param, retrocedem, trotam de um lado a outro da mesma via. Surgem mais oito, Mayana conta. Finalmente, olha para trás e vê que corre em sua direção um número de cavalos equivalente aos carros parados. Olha outra vez para frente, empurra fortemente suas costas contra o banco, coloca o cinto de segurança. Não há mais ninguém do lado de fora, exceto os motociclistas, que não têm onde se esconder.

Os animais rodeiam seu carro de modo que ela só vê os veículos pelas frestas. Ninguém mais buzina. Mayana prende a respiração. Demora soltar. Inspira pouco. Suas mãos apertam o volante, seu pé direito involuntariamente pisa o acelerador, como se fosse arrancar por cima do congestionamento. Quando um cavalo marrom e branco tromba na lateral esquerda do seu carro, balançando-o, ela pisa fundo. Nada muda.

Ao passarem – alguns correndo, outros trotando, todos perdidos –, os cavalos quebram vários retrovisores. Dois começam a brigar atrás do carro de Mayana. Ela ainda consegue ouvir os relinchos, apesar de ter aumentado o volume do som, que somente toca músicas conhecidas. Para conter a ansiedade, sua psiquiatra receitou: não ouvir músicas novas em momentos de pavor. Um cavalo cinza de crina preta sobe em cima de um carro prateado. Amassa-o. No alto, olha para frente por uns minutos, sem qualquer outra movimentação. Olha.  Os donos do veículo somente não saem, porque não há como fugir: cavalos se espremem por entre os carros. E tudo ao redor é cavalo.

Num movimento coordenado, o cinza de crina preta desce do carro prateado, os dois que brigavam interrompem a briga e seguem. Aqueles que se debatiam de um lado a outro da via encontram o norte, olham para lá, vão sem pressa. Como que coreografados, os cavalos todos encontram a direção e se movimentam para o fim da avenida, fim do congestionamento. Mayana olha novamente para trás e vê o número de animais diminuir. Entre eles, lá no fundo, vê um farol de moto seguindo-os. Ao se aproximarem, distingue um homem de pele queimada em cima da moto, com o capacete levantado na cabeça, sorrindo. Por vezes, fica em pé na motocicleta em movimento, levanta um dos braços e grita algo. Ele e os cavalos seguem.

À medida que passam, as pessoas atrás deles, livres dos bichos, descem dos veículos e olham também para frente, algumas fotografam. De um ônibus escolar desce uma multidão de crianças uniformizadas. Elas pulam, batem palmas, soltam gritos, dizem umas para as outras o que é aquilo. Mayana, ainda sem entender, abre o vidro do lado direito para ver passar, agora sem perigo, os últimos cavalos e o motoqueiro. Quando passam por ela, um pouco mais a frente, o homem se levanta outra vez na moto, retira o capacete, levanta-o com o braço direito e, num fôlego prolongado, grita: arreia!

Mayana não desce do carro como os outros, mas permanece olhando. Só desvia o olhar para a esquerda quando vê descer o homem calvo que, também vidrado, enxuga lágrimas do rosto. Ele vai até o jovem sarado no carro da frente, passa o braço em seu ombro, gritam juntos o canto do motociclista. Mayana fecha novamente o vidro. Remexe nas sacolas do banco do carona, retira de uma delas um livro editado pela Cosac. Tinha decidido ir ao shopping comprar logo uma boa quantidade antes que tudo acabe. Antes de abrir o livro, porém, olha para frente e vê ainda o motoqueiro sumir rodeado pelos últimos cavalos no horizonte sem fim de carros. Não é mais possível ver para onde seguem. Volta-se ao livro, abre num poema que começa: Um enorme rabo de baleia/ cruzaria a sala neste momento(...).



***



Douglas de Oliveira Tomaz, nascido em 1993, é autor do blog pessoal www.abrigosdevagabundo.blogspot.com.br, recebeu uma menção honrosa no concurso literário do Clube de Escritores de Ipatinga – MG (Clesi), edição 2013, e possui textos seus publicados pela Revista Jangada e Conhecimento Prático - Literatura. Em 2015, lançou de modo artesanal seu primeiro livro de poemas: Escorre. Atualmente, reside em Pirapora - Minas Gerais.


Ilustração: Vinícius Ribeiro (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)

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