Aqui no mato
Vai ocupando o
concreto
Os bichos pastam
Onde há de haver
mais prédios
Condomínios que
prometem
O prazer do mato
dentro da cidade
Mato dá prazer
Mato dá prazer
Mato dá prazer
- Salma Jô e Macloys (Carne Doce)
Mayana abre uma das sacolas repousadas no banco do
carona, retira dois pacotinhos de jujuba, abre-os. Enfia na boca três jujubas
de uma vez. Inspira, prende o ar por uns segundos, depois solta. Repete o
movimento. Quando as três jujubas se dissolvem, repõe mais três: laranja,
morango, uva. Inspira, prende, solta. Após repetir o ciclo respiratório por
vinte vezes, já não cabem três jujubas na boca, apenas duas. O açúcar já
começara a fechar sua garganta. Meditando, calcula que na sexagésima vez não
haverá espaço para nenhuma. Nenhuma.
A
buzina incessante dos veículos ao redor a retira do transe. Interrompe a
meditação e, remexendo em outras sacolas, retira dois cedês recém-comprados.
Duas bandas novas, totalmente desconhecidas. Abre com dificuldade o plástico do
primeiro, retira o encarte, tenta ler as letras. Mas a buzina incessante.
Desiste. Passa do lado de fora uma moto apressada que quase arranca seu
retrovisor direito. Mayana inspira, prende o ar por uns segundos, depois solta.
Retira o cedê, insere-o no som do carro. Deixa tocar a primeira música. Tenta
acompanhar a letra. Sorri para alguns versos engraçadinhos. Após um minuto e
uns segundos quebrados, retira o cedê, guarda-o no porta-luvas junto com o
outro, ainda plastificado. Insere o pen-drive.
Interrompe
as jujubas. Retira de outra sacola uma barra de chocolate branco. Destaca três
gomos, mas, desta vez, espera o primeiro começar a se dissolver para ingerir o
segundo. No fim do terceiro, bebe um longo gole d´agua. Está pronta para mais
três gomos. Sem culpa.
Um
homem calvo desce do carro parado à esquerda. Posiciona uma das mãos acima dos
olhos, tenta alcançar o fim do congestionamento. Não alcança. Xinga, bate com a
mesma mão em cima do capô, vai até o volante, aperta insistentemente a buzina.
Xinga outra vez, desta vez mais alto, palavrão novo. Encosta na lateral, grita
algo ao jovem sarado à frente, que já esperava do lado de fora. Os dois levantam
os braços para o alto, como orangotangos.
No
fim do sexto gomo de chocolate, após beber mais um gole d´agua, Mayana vê
passar um cavalo branco encardido pelo lado direito. Repousa a garrafa no banco
do carona, franze a testa, observa. Atrás do primeiro, surgem mais dois
cavalos, um marrom e outro negro; passam correndo. Pelo lado esquerdo, surgem
quatro: malhado, amarelo, marrom de tom mais escuro e outro de tom mais claro.
O homem calvo e o jovem sarado interrompem a discussão e entram assustados nos
carros. Fecham os vidros.
Os
cavalos costuram o trânsito congestionado. Alguns param, encostam seus focinhos
nos vidros, assombram as pessoas, depois saem. Outros parecem perdidos: correm,
param, retrocedem, trotam de um lado a outro da mesma via. Surgem mais oito,
Mayana conta. Finalmente, olha para trás e vê que corre em sua direção um
número de cavalos equivalente aos carros parados. Olha outra vez para frente,
empurra fortemente suas costas contra o banco, coloca o cinto de segurança. Não
há mais ninguém do lado de fora, exceto os motociclistas, que não têm onde se
esconder.
Os
animais rodeiam seu carro de modo que ela só vê os veículos pelas frestas.
Ninguém mais buzina. Mayana prende a respiração. Demora soltar. Inspira pouco.
Suas mãos apertam o volante, seu pé direito involuntariamente pisa o
acelerador, como se fosse arrancar por cima do congestionamento. Quando um
cavalo marrom e branco tromba na lateral esquerda do seu carro, balançando-o,
ela pisa fundo. Nada muda.
Ao
passarem – alguns correndo, outros trotando, todos perdidos –, os cavalos quebram
vários retrovisores. Dois começam a brigar atrás do carro de Mayana. Ela ainda
consegue ouvir os relinchos, apesar de ter aumentado o volume do som, que
somente toca músicas conhecidas. Para conter a ansiedade, sua psiquiatra
receitou: não ouvir músicas novas em momentos de pavor. Um cavalo cinza de
crina preta sobe em cima de um carro prateado. Amassa-o. No alto, olha para
frente por uns minutos, sem qualquer outra movimentação. Olha. Os donos do veículo somente não saem, porque
não há como fugir: cavalos se espremem por entre os carros. E tudo ao redor é
cavalo.
Num
movimento coordenado, o cinza de crina preta desce do carro prateado, os dois
que brigavam interrompem a briga e seguem. Aqueles que se debatiam de um lado a
outro da via encontram o norte, olham para lá, vão sem pressa. Como que
coreografados, os cavalos todos encontram a direção e se movimentam para o fim
da avenida, fim do congestionamento. Mayana olha novamente para trás e vê o
número de animais diminuir. Entre eles, lá no fundo, vê um farol de moto
seguindo-os. Ao se aproximarem, distingue um homem de pele queimada em cima da
moto, com o capacete levantado na cabeça, sorrindo. Por vezes, fica em pé na
motocicleta em movimento, levanta um dos braços e grita algo. Ele e os cavalos
seguem.
À
medida que passam, as pessoas atrás deles, livres dos bichos, descem dos
veículos e olham também para frente, algumas fotografam. De um ônibus escolar
desce uma multidão de crianças uniformizadas. Elas pulam, batem palmas, soltam
gritos, dizem umas para as outras o que é aquilo. Mayana, ainda sem entender,
abre o vidro do lado direito para ver passar, agora sem perigo, os últimos
cavalos e o motoqueiro. Quando passam por ela, um pouco mais a frente, o homem se
levanta outra vez na moto, retira o capacete, levanta-o com o braço direito e,
num fôlego prolongado, grita: arreia!
Mayana
não desce do carro como os outros, mas permanece olhando. Só desvia o olhar
para a esquerda quando vê descer o homem calvo que, também vidrado, enxuga
lágrimas do rosto. Ele vai até o jovem sarado no carro da frente, passa o braço
em seu ombro, gritam juntos o canto do motociclista. Mayana fecha novamente o
vidro. Remexe nas sacolas do banco do carona, retira de uma delas um livro
editado pela Cosac. Tinha decidido ir ao shopping comprar logo uma boa
quantidade antes que tudo acabe. Antes de abrir o livro, porém, olha para
frente e vê ainda o motoqueiro sumir rodeado pelos últimos cavalos no horizonte
sem fim de carros. Não é mais possível ver para onde seguem. Volta-se ao livro,
abre num poema que começa: Um enorme rabo
de baleia/ cruzaria a sala neste momento(...).
***
Douglas
de Oliveira Tomaz, nascido em 1993, é autor do blog pessoal www.abrigosdevagabundo.blogspot.com.br,
recebeu uma menção honrosa no concurso literário do Clube de Escritores de
Ipatinga – MG (Clesi), edição 2013, e possui textos seus publicados pela Revista Jangada e Conhecimento Prático - Literatura. Em 2015, lançou de modo
artesanal seu primeiro livro de poemas: Escorre.
Atualmente, reside em Pirapora - Minas Gerais.
Ilustração:
Vinícius Ribeiro (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)
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