Guardo esta noite para a
reconciliação. Quantos voltaram a escrever após arrumarem o quarto. Uma noite
inteira para olhar um a um os livros caídos. Se eu pudesse, fotografaria esta
cascata. Quanto tempo? Me reconciliar com a poeira dos discos, das revistas,
desempilhá-los, observá-los um a um em seu abandono, um quarto. Durante, arroz
no fogo, meus dedos abandonam o corte da página, corte preciso, resto de
cenoura. Geladeira abandonada. Retorno.
Coletar
tomates de uma horta seca. Selecionar a audição de um disco, dois mil e oito.
Procuro a data, não encontro. Pintura romântica na estampa da camisa que retiro
da mala. Repovoar o guarda-roupa. Com o arroz prestes a queimar, deslizo meus
dedos pelos cabides soltos, pelo desejo. A página em corte ainda vivo. Observo
os dedos, tão longos para esta idade; de quem herdei os dedos, encaro a noite.
Troco as cortinas. Agora a luz virá, quando for de vir.
Se
eu pudesse pousar um porta-retrato sobre a escrivaninha. Se houvesse moldura
possível para hoje, qual canto. O disco se interrompe sozinho, demoro a ouvir.
Demoro a ouvir o silêncio do disco, quanto tempo calado, meu deus, quanto
tempo. Cenoura em toco. Plantas semimortas. Cuidar da horta, trocar as
cortinas, ainda não é hora de ir lá. Quase tropeço. De tanta demora, estou
prestes a virar imagem.
Arrumar
o quarto e só agora, dois mil e dois, voltar à casa que se foi. Abro uma
revista, leio os resultados. Uma frase, uma história contada a partir de uma
frase. Milena se suicida porque já não aguenta os arquejos da mãe. Escreve na
borda de uma partitura: não aguento os arquejos de minha mãe. Procuro pelo
autor da história dentro do quarto. Mas ele está fora, algo me diz que ele está
lá. Ainda não é hora. Retiro da mala o pior dos agasalhos.
Se
este texto for tentativa de me comunicar com Milena, não digo. Despetalo a rosa
azul e procuro na pilha os livros do mar, que avançam em direção à cama.
Londres dentro do quarto. Para que eu possa um dia reencontrar os rastros e
perseguir o mar através dos livros como quem procura nas mesmas pétalas azuis a
rosa de antes. Dois mil e sete. Arrumar o quarto e ir deixando rastros de uma
passagem vaga que no entanto acumula louças, e a poeira quem tira?
Deitar
sobre a cama, afastar os livros para evitar o corpo a corpo noturno. Após comer
uma comida triste. Após o disco reiniciado quantas vezes. Deitar sobre a cama,
afastar as canetas, a jangada em miniatura que sem querer, os cabides soltos,
afastar o desejo para que um corpo possa caber. Arrumar o quarto, rastros pela
casa, casa, uma presença vaga. Retorno. Através um durante.
***
Douglas de
Oliveira Tomaz, 24 anos, é autor do blog pessoal www.abrigosdevagabundo.blogspot.com.br,
foi premiado pelo concurso literário do Clube de Escritores de Ipatinga – MG
(Clesi) e possui textos seus publicados pelas revistas Jangada e Conhecimento
Prático - Literatura. Publica regularmente crônicas n’O Salto e mora em Belo Horizonte, onde escreve seu primeiro livro
de contos.
Ilustração: Vinícius Ribeiro. Começou a
desenhar desde a mais tenra idade e nunca mais parou. Atualmente, estuda Artes
Visuais na Universidade Estadual de Montes Claros. Colabora periodicamente como
ilustrador para O Salto, além de ser
autor do blog pessoal Pensamento
Ilustrado (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)