Meus
pés pisavam folhas secas de eucalipto. Farfalhos e estalidos de gravetos se
faziam ouvir. Vários carrapatos, alguns pequenos e outros relativamente grandes
subiam pelas minhas pernas, invadiam partes íntimas, picavam, principalmente a
região escrutina que coçava, coçava muito. Meu irmão me acompanhava nessa
empreitada. Catávamos lenha para acender a fogueira na fornalha, cozinhar o
feijão, economizar o gás e diminuir a tristeza noturna do frio julho.
Era proibido catar lenha naqueles
pastos. Às vezes o ronda nos surpreendia, obrigava-nos a correr, de maneira
desabalada, os feixes nos ombros, passar debaixo das cercas de arame farpado,
às vezes nos machucávamos nas pontas enferrujadas do arame. Carecíamos de
álcool para passar nas feridas, livrar-nos no mínimo da cisma do tétano. Quase
nunca havia.
Não sei por que, meu pai me apelidou
de Dodô. Talvez por esta cara de
sonso e aludindo ao personagem de Alice
no País das Maravilhas, cara que fazia alguns me chamarem de Sonson. Meu irmão, o Henrique, era
apelidado de Ique. Lembra soluço.
Tais apelidos, creio, pegaram mais porque meu pai, todos os meses, na véspera
de pagamento, costumava nos presentear com carrinhos de brinquedo, de plástico.
Para mim uma Bascola, para meu irmão
um Volks.
O velho tinha uma sanfona antiga,
vermelha, pequena, oito baixos, da Hering.
Tinha a mania de cantar de uma maneira bem peculiar, enquanto tocava:
- Vôca do Ique, Bascola do Dodô. Vôca do Ique, Bascola do Dodô.
Às vezes mudava a toada, o que para
mim era um alívio, já que, a molecada da Rua J. B. D. costumava ouvir seu
Afonso tocar, ao passar na rua, decorar o som para que nós pudéssemos lhes
servir de chacota. Tenho o estopim bem curto, por isso eu sofria mais.
Outras toadas clássicas de meu pai
eram:
-
Para, Pedro! Pedro, para. Ou:
-
Dona Mariquinha foi tomar banho na gamela, a água estava quente e sapecou a
bunda dela.
Crescemos com o sonho de comprar um
carro. Não consegui o feito, que acabou sendo realizado por meu irmão.
Não sabíamos dirigir. No dia da
compra, bebemos muito para comemorar, não um Volks, sim um Opala
amarelo. Meu irmão emprestou o carro a um primo que sabia dirigir, para teste.
O último saiu e ficamos sentados a uma mesa, próximos ao balcão do bar, onde
bebíamos.
Esquecidos de que havíamos
emprestado o carro, saímos do bar, bebíssimos.
Não vimos o veículo, ficamos desesperados, a sensação de termos sido roubados.
Procuramos pela região do bar, nada achamos, chamamos a polícia, fizemos B. O.
Por fim, fomos para casa.
Apesar
da tristeza, foi fácil dormir, mergulhados naquele mundo de águas.
Pela manhã, com a maior cara de
ressaca, meu irmão foi contar à sua esposa que o carro havia sido roubado, a
ponto de dar vazão a um pranto. Ela lhe disse:
- Então, eu estou variando. Que Opala amarelo é aquele que seu primo
trouxe e guardou na garagem?
Ele:
- Eu já sabia. Estava só brincando.
Apareci na casa de Henrique, mais
tarde, surpreendi-me, ao vê-lo, como uma criança; simulava dirigir, buzinava,
fazia ruídos de automóvel com a boca, à maneira que brincávamos em pequenos.
- Entre aqui, cara.
Entrei no Opala. Ele pegou uma fita e colocou para tocar uma música da banda
alemã: Accept. Metal Heart.
Ficamos ali, umas longas horas.
Agora, imagino como era fácil, no
tempo mais comum de o sonho fluir, andar de carro, mesmo sem saber dirigir,
viajar pelo mundo inteiro, sem sair do lugar.
***
Edson
Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi
professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e
autor dos livros Alice no país da mesmice
(2000), Historinhas integrais em prosa e
verso (2015), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).