Escolher o que se lê parte, antes de tudo, de um reconhecimento. Elenquei
aqui três escritoras com as quais me reconheço nas linhas, em suas modificadas
formas. Lembro-me da menina que ao descobrir cada uma delas, acabava por se
descobrir também. A seu modo, todas escrevem para salvar a si e alguém, e eu
leio com essa mesma intenção.
Uma) Clarice Lispector
Louca, hermética, mística, genial, inovadora: adjetivos que perpassaram
toda obra escrita de Clarice. De origem pobre, a jovem escritora judia de
sotaque engraçado, causa espanto e admiração no cenário da literatura nacional
com o lançamento do seu primeiro livro: Perto
do coração selvagem. O romance antecederia as principais características
das obras subsequentes, a principal delas, o rompimento da lógica cartesiana no
romance. Introspectiva para aqueles que não a entenderam, a escritora dá lugar
ao pensamento, ao fluxo, escrevendo apenas, como que para salvar a vida de
alguém (sem compromissos com o cânone), talvez a dela, como viria a dizer. Sua escrita é selvagem e convence apenas por
ser; suas personagens, assim como sua criadora estão no limiar da descoberta, dos
pequenos delitos, das fugas morais, na recriação do mundo e do próprio fazer
literário. Em Clarice, biografia e obra se confundem, se misturam, a confissão
impregnada nas personagens em terceira pessoa traz em seu cerne um naco grande
de carne e essência da escritora, talvez, por isso, ela ficava oca quando terminava de escrever. A
palavra para ela é além, é corpórea, matéria vertente, água em fluxo
corrente.
sim, quero a palavra última
que também é tão primeira que já se confunde com a parte intangível do real.
Ainda tenho medo de afastar da lógica porque caio no instintivo e no direto
(...). Que mal porém tem eu me afastar da lógica? Estou lidando com matéria-
prima.
Em entrevista ela confirmou minha expectativa ao dizer que para entendê-la
era preciso, antes de tudo, sentir, de nada adiantavam as teorias, ela escapava
e escapa a qualquer conceituação de gênero. Eu sinto.
Duas) Ana Cristina César
Outra mulher que também causaria reboliço algumas décadas mais tarde,
era a carioca Ana C. César. A sua experiência com a escrita começou muito cedo,
segundo a mãe, desde pequena, antes mesmo de conhecer os signos escritos, ela
ditava e pedia que escrevesse; em suas primeiras publicações há textos produzidos
aos 16 anos apenas. Conhecida por ter feito parte da chamada geração mimeógrafo, César teve a maioria
de suas publicações desvinculadas de editoras, pois dedicava-se a uma produção
artesanal, acessível ao leitor, marginal.
Escrita em tom confessional, a poesia de Ana convida a um mergulho na
própria identidade, na dela, na nossa. Sua palavra se articula de maneira
simples, esvoaçante, descompromissada com regras de sintaxe. A escritora também
segue um fluxo, o da confissão, por esse motivo torna-se tênue a linha entre o
que é ficção e o que é real; tudo é mentira, tudo tem vias de ser verdade. A
intimidade dos textos é atordoante, Ana salta das páginas e mostra ao leitor a
janela do texto de onde viria a pular em outubro de 83, escrever é premunir,
ler é testemunhar essa poética felina livre, que salta despreocupadamente.
Localizaste o tempo e o espaço
no discurso/que não se gatografa impunemente./É ilusório pensar que restam
dúvidas/e repetir o pedido imediato./O nome morto vira lápide,/falsa impressão
de eternidade./Nem mesmo o cio exterior escapa/à presa discursiva que não sabe. Nem mesmo o gosto frio de cerveja no teu corpo/se localiza solto na grafia./Por
mais que se gastem sete vidas/a pressa do discurso recomeça a recontá-las fixamente, sem denúncia/ gatográfica que a salte e cale.
Três) Marjane Satrapi
Ainda buscando relacionar biografia e autora, destaco por último, mas
não menos importante, a escritora iraniana Marjane Satrapi. Escrever, criar, é
também e sempre um ato político. A escritora e desenhista emerge com uma
proposta diferente de contar, de confessar e de estimular atitudes
“transgressoras” frente a um regime autoritário e violento. Em seu primeiro
livro, Persépolis, escrito e
ilustrado através de quadrinhos, a autora relata sobre sua infância até a vida
adulta permeada por fatores como política, comportamento, construção de
identidade, preconceito e questões que perpassam a vida de qualquer mulher
durante seu desenvolvimento. O “universo feminino” tratado no livro vai desde
as lembranças das mulheres mais velhas da família a posicionamentos frente à
opressão vivida tanto no oriente quanto no ocidente, opressão essa que impõe
padrões de comportamento a meninas e mulheres e pune direta ou indiretamente
quem não os segue.