domingo, 30 de novembro de 2014

As fotografias de Aparício Mansur



Minha mãe era poetisa, cresci ouvindo ela declamar seus poemas, ler seus escritos. Aos sete anos já tocava violão; no colégio, era líder em movimentos estudantis e grêmios onde comecei a escrever e editar em pequenos jornais da época. Como músico, participei de dois Festivais da Canção, venci os dois, sendo que em um deles primeiro e segundo lugar. Participava de peças teatrais e vivia sempre envolvido com todos esses eventos. Com o passar dos anos, os caminhos foram mudando, ou melhor, as opções ficaram mais maduras. Passei a me dedicar então às fotografias, aos estudos e à luta pelo Meio Ambiente. Tornei-me professor para estar mais perto das crianças e adolescentes e, junto deles, lutar pelo rio, pelo resgate da nossa história, e na prevenção para um cuidado maior sobre esse nosso bem. 



Conheci o meu velho rio em 1981, e não sei por que, quando o vi, chorei, chorei muito, foi uma sensação muito estranha. A partir deste dia, nunca mais me afastei do rio e da cidade de Pirapora. Deixei toda uma vida já feita em Belo Horizonte e me mudei para cá. Casei aqui e pude e posso estar lutando pelo rio, através do meu site, do meu facebook, divulgando suas notícias, suas mazelas e sua luta pela sobrevivência.



O rio é um ser vivo, ele pulsa. Somente de uma maneira muito pessoal, ali, sentado à sua beira, acariciando suas águas, dá para sentir o quão vivo e importante ele é. Alimenta, refresca, transporta e faz sonhar.



- Aparício Mansur, em entrevista concedida ao Salto, 26 de novembro de 2014.

Aparício Mansur

Aparício Mansur é fotógrafo e se formou em Gestão Ambiental pela UFSC. Sua formação e atuação profissionais estão relacionadas, portanto, à fotografia e ao meio ambiente. Suas fotografias relativas às belezas naturais de Pirapora e região foram publicadas em jornais como O Globo, Estado de Minas, Hoje em Dia, O Tempo, Revista Estados e Municípios e diversos websites. Além disso, teve, por dois anos seguidos, fotografias da Ponte Marechal Hermes selecionadas entre as trinta melhores de Minas Gerais, em duas edições do Concurso Paisagens Mineiras, promovido pelo Jornal Estado de Minas e Diários Associados. Por fim, atua como repórter fotográfico e diretor do site www.velhochico.net.


facebook: Aparício Mansur

"Minha voz é do rio", Priscila Magella



“Aprendi a cantar dentro das águas do Velho Chico, aprendi a doar minha energia de uma forma mais pura, sem esperar nada em troca. Minha voz é do rio.” Priscila Magella é compositora, cantora, atriz e poeta, contabilizando catorze anos de carreira. Nascida piraporense, com os pés, o corpo e a voz muito bem fincados nas águas do Velho Chico, no chão norte-mineiro, Priscila abre espaço no mundo. Abre espaço cantando. Seu último CD, A Barranqueira, trata da vida no rio, amor e sertão, em canções autorais e de outros compositores consagrados, como Magela e Pepeh Paraguassú. Priscila é mais do que uma voz a serviço do rio. Priscila é voz e voz é rio, força que faz as águas nunca pararem. Abaixo, segue a entrevista concedida gentilmente ao Salto. 

Quem te apresentou a possibilidade de ser cantora? 

A vida inteira fui presenteada com essa possibilidade, minha família sempre muito musical, minha Mãe com sua voz maravilhosa, meu Tio com suas lindas canções barranqueiras e meu querido Pepeh Paraguassú com seu violão que sempre abriram caminhos pra me tornar cantadeira do São Francisco. Mas a compreensão do nosso talento musical nunca está plena, entendi o meu caminho através do Rio.

Você vive de música? Quais as dificuldades de se produzir e viver de arte no Brasil? 

Sim, vivo para a Música. E as dificuldades são muitas, a música é uma energia que roda a alma dos poetas e não poetas, é o que nos faz saber que temos um coração, isso dificulta os padrões materiais em que vivemos. Não é fácil, mas é prazeroso.

O que te move, Priscila? 

Não existe apenas um mover, somos parte de uma unificação de movimentos e no meu caso as energias das músicas e das águas sempre me envolvem para o crescimento. O que me leva a produzir arte é, em primeiro lugar, o amor e, depois, a elevação desse sentimento a todos a minha volta. O que me faz cantar é minha alma à parte, esse amor exacerbado que existe em mim. 

Por que você canta?

Porque eu sou o Rouxinol (risos), assim que me chamam.

Quais são suas influências artísticas? 

Sempre busquei muito, mas as condições eram poucas, como até hoje; não tínhamos internet, ou coisas maiores em Pirapora, ou era pago, ou era longe, enfim, era de difícil acesso. Ouvi muito Edith Piaf, Mozart, Billie Holiday, Caetano, Chico, Bethânia, o início do funk, Cazuza, Legião, Luiz Gonzaga, Geraldinho Azevedo, Capitão Magela e minha Mãe, sempre minha Mãe e meu Tio Magela. Li muitas coisas desde os nove anos, livros bem grandes como O mundo de Sofia, e muitos de Zíbia, Shakespeare, Platão, Guimarães Rosa pra caramba, Gabriel Garcia na atualidade, Cecília Meireles, Lília Diniz, Clarice Lispector, também sou poeta, escrevo muitas coisas. Assisti muitos filmes, não em cinema, porque na cidade até hoje não tem; gostava de imitar personagens, sempre fui fissurada por artes, fiz teatro no grupo Metralhas e hoje retomei isso aqui no NET. Ia pro Ateliê Mil Cores ver Tia Mirian e Vó Iracema pintar, adoro o cheiro das tintas, amava ver os desenhos do meu irmão Cristiano e dormir quando ele tocava Ursinho Pimpão na flauta. Arrumava o escritório de Isaías Ramos e Maria Elisa na escola de música Sala Mozart, pra fazer algumas aulas, porque não podia pagar; depois me tornei muito amiga deles e todos os dias ouvia coisas novas, como Beethoven, Chopin, Bach, entre outros. A música erudita me mostrou caminhos jamais vistos, principalmente as cantoras francesas e suas óperas. Hoje ouço muita coisa, porém de cultura popular, boi de maracanã, toco um pouco de maracatu, faço oficinas de ciranda e voz e já conheci alguns mestres dessa nossa cultura que me presenteou em poder cantar suas “loas”. Fiz capoeira no Grupo Bantus e no grupo Capoeirarte e, como não tinha grana pra batizar, trancei todos os cordéis dos meninos pra ganhar o meu primeiro, no Bantus (risos). Então acho que a vontade é maior que as possibilidades.

Como Pirapora recepciona sua carreira? 

Nossa, bem complexo falar de Pirapora. Quando se diz da cidade enquanto pessoas, o meu canto é sempre bem vindo, mas quando se trata de governo, existe um coronelismo bem forte até hoje, não quero entrar nesse aspecto, mesmo porque todos que me conhecem sabem qual é a minha postura. Um dia, Marku Ribas me disse bem assim: “Priscilinha, ame Pirapora geograficamente...”. Não entendi de cara, mas, hoje, entendo e vivo isso na pele. Mas, como disse, sempre recebi o apoio do público, acho que as pessoas ficam felizes em saber que conto, canto e levo um pouco do nosso sertão por onde passo.

Como você compreende a Arte Barranqueira?

É uma força de vontade bem grande de crescimento e amplitude, antigamente se ouvia mais cantos barranqueiros, viam-se carranqueiros, canoeiros, lavadeiras e toda essa arte que tem se perdido na teia do tempo. O barranqueiro defende seu sertão, canta pro Rio, se queima de sol e tudo é arte, até quando não se está fazendo arte.

E a música barranqueira? 

É uma singela oração ao Velho Chico!



Priscila Magella

Aprendi a cantar dentro das águas do Velho Chico, aprendi a doar minha energia de uma forma mais pura, sem esperar nada em troca. Minha voz é do rio.



facebook: Priscila Magella

Poemas do minimal ou 7 poemas subversos

ALCOVA
Essa sua
Lembrança viva
Me lembra saliva.

POLITICAGEM
Eu prometo
Daqui pra frente
Amor perfeito

DESEJO
Nesse mar de tristezas
Toda estrela cadente
Caia doente.

A VIDA É BELA
Entretanto
Tanta sede
Tanto espanto

ESTALO
O sonho mingua
No estúpido beijo
O estupor da língua.

AGUÁRIO
Atenção!
Não alimente
os rancores.

EMERGÊNCIA
Em caso de paixão
Quebre
as regras.


Cata

Fecho 
Abro
Fecho
O punho pulsa
Esmurro a mesa.
Pesa e se afrouxa 
E pesa
Essa incerteza.
Essa porta aberta
Coração contendo o sangue
Feito represa.

Repasso o futuro no lápis
Erros de cálculo
Falhas de vida
Abro a janela e choro
Como quem abriu
Uma ferida.
Ameaço, esbravejo
(A visão do cego são sonhos)
E está tudo torto

Ignoro o álcool
Já bêbado com a vida
Como quem procura
O tesão já morto.




Soturno


Tinha todo o corpo rijo. Teso. Como se o sangue tivesse se tornado mais denso e as horas mais pesadas. Como se os pecados de outrora tivessem adquirido quilos extras em suas costas e as cores bruxuleantes do sol poente formassem línguas de fogo a lhe cuspir insultos.

Era preciso limpar-se.

Retirou as roupas do corpo como aquele que tenta apagar seu nome escrito no jornal de embrulhar peixes. Era preciso estar nu. Ser nu. Desnudar-se. Como se as roupas em contato com o corpo lhe arranhasse a beleza da pele e a leveza da vida só pudesse ser alcançada nua.

Nu, sentou-se no chão empoeirado do quarto a destilar lembranças esquecidas nas gavetas junto às fotografias. Encontrou uma carta amassada escrita por um dos fantasmas do passado. Estará viva? Ou teria se perdido em meio ao calor sufocante das avenidas lotadas? Ele sabia que isso agora pouco importava. Por que mais do que tudo, era preciso limpar-se.

Jogou em um canto a carta e junto a ela uma foto 3x4 de uma tia enviuvada. Sorriu sádico imaginando aquela gaveta como o cárcere onde se definhavam todas as coisas usadas que tinham perdido sua importância. Salvou dos papéis uma receita velha de brigadeiro de coco, que jamais havia feito ou faria. O restante foi para o canto, de castigo junto à carta e a foto.

Levantou-se em ímpeto desenfreado de se molhar. O passado nas gavetas estava sujo e fedia a algo agridoce que lhe embrulhava o estômago. Entrou no chuveiro de olhos fechados na tentativa de rever aquela chuva de um dezembro distante. Não funcionou. Aquela memória havia se desgastado e ele agora lamentava tê-la usado em dias menos penosos.

Saiu do chuveiro sem se enxugar. Deixou um rastro pela casa como o dos caramujos na areia branca da praia. Parou em frente ao espelho olhando os cabelos frisados e saiu de cena com um muxoxo teatral. Dirigiu-se à cozinha e enxugou as mãos no pano que cheirava a frituras.

Voltou para o quarto, e ainda nu, puxou o lençol da cama para o chão e sentou-se. Alcançou habilmente o bloco de notas e a caneta no criado mudo. Rabiscou versos estranhos no papel branco. A caneta falhava. Ele também. Desistiu dos versos por hora e pegou na estante uma garrafa de um destilado qualquer. Dispensando o copo virou um gole. Lembrou-se de uma boa rima para o seu verso. A caneta falhava e o corpo havia molhado o papel. Pensou no modo incongruente e pouco laborioso de como os versos soavam. Gostou. Tomou outro gole. Escreveu mais um verso. Ouviu meio abafado o som do rádio na casa ao lado. Uma música brega e ilegível que aos poucos se transformava em apenas um chiado. Era um ruído frio. Fechou os olhos. E o rádio chiava junto ao vento. Uma das janelas devia estar aberta embora o vento fosse fraco. O corpo molhado, o ruído do rádio, o calor da bebida destilada em seu estômago. Lembrou-se novamente daquela chuva de dezembro e dormiu.

Por fim estava limpo.

Julian Oliveira


Julian Oliveira é poeta. Nascido na cidade ribeirinha de Januária, morou em diversas cidades de Minas, dentre as quais Chapada Gaúcha, sede do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, onde encheu seu coração de sertão, e em Buritizeiro, lugar que o religou a suas origens barranqueiras. Participante da antologia Combustível, metal e poema e autor do livro Anos-Luz, hoje estuda Jornalismo na UFMG, dedicando-se à fotografia juntamente à poesia. 

Segundo diz,

“Escrever é ânsia. É como o aperto no peito dos enfartados. Fruto de uma vontade que brota do mesmo motivo misterioso pelo qual o universo se expande. Ter nascido em uma cidade ribeirinha e, posteriormente, morar na barranqueira cidade de Buritizeiro, me fez por diversas vezes pensar nos versos como algo tão fluido quando as águas do Velho Chico. Algo que ora nos escapa entre os dedos. Ou que por vezes nos afoga. Nunca consegui incorporar de maneira muita clara, em meus escritos, elementos relacionados ao ideário mineiro e/ou ribeirinho. Não que a mineiridade ou o sentimento barranqueiro não estivessem presentes em minha vida, apenas creio que esses elementos acabaram por influenciar mais meu estilo de vida dos que os meus versos em si. Tenho versos impregnados de rio e sertão sem nunca tê-los citado de forma direta.”


facebook: Julian Oliveira

Fotografia que é rio - Marina Vargas Tomaz

Busco, através da fotografia, detalhes, coisas, objetos, cores minúsculas, imensas paisagens num espaço despercebido. Busco através do registro fotográfico, alcançar o que meu olho tenta ver, deseja registrar... Afinal, há tantas formas de olhar, tantos jeitos de ver... E são essas tantas visões do mundo, macro e micro, natureza, bicho, pedra, água, que procuro guardar, como numa preciosa coleção, pequenas grandes coisas, tesouros, pequenos presentes de acaso.



Meu processo de criação começa no rio. Posso dizer que em todas as imagens, existe um rio, uma cor rio, um cheiro e uma textura que me remetem ao tempo físico de proximidade e presença. Tudo é influência: a curva, o barulho das águas, o apito do vapor aos domingos, a areia, a correnteza leve e sua cor generosa acolhendo o tempo das chuvas e do sol, agregando ora força, ora dor, como agora.












***


Marina Vargas Tomaz formou-se em Belas Artes, pela UFMG, e hoje mora em Uberlândia, onde trabalha como professora de artes para o ensino fundamental, além de cursar o mestrado em Artes Visuais pela UFU. Contribuiu com suas ilustrações para a série de livros infantis, em quatro volumes, As aventuras de Pira-Poré, de Maria Vargas, e para o projeto gráfico do CD A Barranqueira, de Priscila Magela. Segundo ela, “através da arte, podemos enriquecer nossas relações, melhorar nossa comunicação e estreitar nossos laços humanos e poéticos.”

Marina Vargas Tomaz

Marina Vargas Tomaz formou-se em Belas Artes, pela UFMG, e hoje mora em Uberlândia, onde trabalha como professora de artes para o ensino fundamental, além de cursar o mestrado em Artes Visuais pela UFU. Contribuiu com suas ilustrações para a série de livros infantis, em quatro volumes, As aventuras de Pira-Poré, de Maria Vargas, e para o projeto gráfico do CD A Barranqueira, de Priscila Magela. Segundo ela, “através da arte, podemos enriquecer nossas relações, melhorar nossa comunicação e estreitar nossos laços humanos e poéticos.”


Quando você sorri

Seu sorriso,
Mesmo tímido, mudo,
Transfigura-me em alegria...
Ele é a luz, o sol,
Infinito dia.
Por entre os lábios
De sua boca grande
Um presságio.
O signo indecifrável,
O cântico...
Anunciando
Que a eternidade
Está contida
Nos segundos
Em que você Ri.
Puro.
Ingênuo.
O êxtase!
Um riso etéreo
Baila em minha alma...
E está tatuado,
'Silkado' em mim!
Já o sabia todo meu
Desde antes de te conhecer
(antes mesmo de você nascer!)
Em minha memória musical
Estará cifrado,
Eternizado
(como numa fotografia)
O som da sua gargalhada.



Aboio

Um dois três quatro
Quatro três dois um
Formação!
Sim, senhor!
Esquerda Volver!
Direita Volver!
Sim, sinhô!
Ê boi!
Ê ôo.




Caliandra

Vermelho!
Pétalas de fogo
Incêndio sob o sol.
Uma flor em carne viva:
Caliandra.
Primavera que arde...

O verde opaco do cerrado
Ressalta as setas rubras
Que vicejam.
Cada pétala é um raio de luz.
Sua seiva é de sangue
E escorre em veias que latejam.

Caliandra,
Ramalhete Incandescente
Vegetal que sangra
Flor que pulsa.
Beleza que fere a vista
De quem desconhece o cerrado.

Vibrante rubi
Flor carnívora
Que nasceu no meu quintal
Violentou minha retina
Devorou minha alma
E a si própria consumiu
Na tarde quente. 



Rafael Oliveira

Perguntado sobre o seu processo criativo, o escritor respondeu: “A vontade de escrever é como uma coceira. Inquieta a gente. Não tem como resistir. Tenho vontade de escrever quando não tem papel à mão: no meio da rua, na fila do banco, numa festa, no ônibus. Escrevo quase que por necessidade.”


E ainda: “Gosto de escrever poemas. Gosto da liberdade que é própria da poesia. Escrevo para desnudar a alma, com liberdade, e lançar as palavras sem pretensão de informar ou esclarecer, apenas pela necessidade de expressar o que é etéreo (o pensamento, o sentimento, o inconsciente). No poema é permitido falar de mim, do rio, do cerrado, do cotidiano, do que agrada, do que aborrece, do que há de luz e de obscuridade no ser humano. Do outro lado, o leitor tem toda a liberdade de degustar o poema como bem entender. Essa liberdade e fluidez que a palavra adquire com a poesia é o que me fascina.”


facebook: Rafael Oliveira

David Nascimento, outros trabalhos







o perfil do artista aqui.

David Nascimento

O processo criativo surge da minha distração, sempre estou à procura de situações que me levam a outra dimensão, fazendo produzir com mais intensidade. Distraio-me em simplicidades, e a simplicidade hipnótica do olhar é a principal das minhas distrações. Eu acho que, das coisas que me motivam, a visão aberta e ilimitada é a mais importante. Sou muito questionado quanto à maneira que retrato o olhar em minhas obras. Vai além de uma fissura desde que me entendo por gente, percepção, atenção, cuidado, perspicácia são coisas que as pessoas me cobram com intensidade, e a melhor maneira que encontrei para evoluir nesse sentido, foi a de inserir isso na minha arte. 


Estou em um processo corrosivo de encontro, com tantos recursos, a arte se expande de forma monstruosa. Mas isso vai além do pessoal, abrange algo que todo o mundo deveria ter: a visão completa dos sentidos vista de todos os ângulos, a mostra da realidade no irreal e o abandono dos limites referenciais. 


Minhas duas maiores influências tiveram vidas opostas, mas viveram de forma intensa: uma foi mulher, sofreu e amou com intensidade, teve como única alternativa, a pintura. Pintava sua realidade, a realidade do sofrimento, não se deixou vegetar. O outro se intitulava o próprio surrealismo, teve uma base oposta, uma evolução prematura e transgressora. 


Descobri em mim, a oportunidade de ser sonho e realidade, quebrar essa tênue e acompanhar com suavidade a minha evolução. Lembro-me de que, ainda pirralho, na casa da minha avó, pegava caracóis em tempo de chuva e pintava suas conchas. Eu enxergava mais vida, acho que todos deveriam pintar suas conchas, não se limitar na proteção, fazer dela seu acervo de sonhos.


- David Nascimento, em entrevista concedida ao Salto, 03 de outubro de 2014.

Mais trabalhos do artista aqui. 

David Nascimento


facebook: David Nascimento

Par-to tempo

I

A água escorreu verbo no primeiro banho do dia. Manchou de vapor e suor, espelhos e roupas.O pote encheu-se pingando, pulsando. Na separação das gotas que o compunham, decidi pela escolha da que suasse e soasse impiedosa, a que molhasse primeiro os olhos e meu pedaço de papel. 

II

THERE IS NO TIME

III

Estico as pernas e consigo alcançar a parede do ventre que me carrega agora. É de espaço pequeno, e o desconforto sugere saída.

IV

No espaço cabe um poema, me dê tempo para escrevê-lo. Talvez nasça agora, livre de tudo, nu, ou vire estrela, um parto eterno, um pacto.

V

Vinte e três de setembro, primeira contração, descoberta primaveril dos ipês em flor.E o mundo, me cospe para fora, outra vez.

IV

Aprendo agora meus primeiros sons. Balbucio e entrevejo em roxo o princípio de um delírio, enlouqueço, agora que nasci.



Brenda K. Souza

Descrição possível: Sou suor. De perto do rio, estudante de letras, aspira um dia ser peixe.



facebook: Brenda K. Souza
blog pessoal: Sanguinho Novo

SPIDER-MAN 'S CRED CARD


De manhã, cedo, uma dor de cabeça desgraçada, pulo da cama. Urino, cago, lavo as mãos, escovo os dentes, tomo um banho, saio de casa. Vou tentar resolver alguns problemas marciais, parcialmente. Carrego na mente muitas dúvidas sobre o valor exato das dívidas: meu começo, meio e fim. Me embaraço nas próprias teias que teço.Tenho decorada a divisão do velho cenário, a cena fracionada. Ponto de espera (Eterna espera!) em uma fila de banco. Meço meu desespero e olho em torno do recinto. Uma mulher no atendimento gerencial chora, de forma copiosa. A figura patética do marido, cheirando a gari, pinga e fumo trevo, não sabe se a consola, se ajeita ininterruptamente o boné sujo na cabeça. Então, o ser ou não ser em questão enxuga o suor da testa, enfia as mãos no bolso da calça costumeira, retira-as, a seguir, como se picado por escorpiões, ao se flagrar, filmado, por com um sorriso franciscano jogado às cáries e à podridão, por vários pares de olhos de lince piedosos. Resisto, dificultosamente, em também cair no sentimento popular de dó dos enfileirados, pois aparece em minha barriga um incômodo mais imediato: seguro um peido. Minhas mãos coçam os olhos, bocejo, sem saber se é efeito da última noite de insônia ou o esboço de um charme tímido e estulto. Não sei se é a mesma timidez articulada que me faz apertar meu grande nariz de carcará num esforço vão em afilá-lo. Julgo melhorar minha imagem, ao reprisar o Pensador de Rodin. Aí uma incontinência urinária me visita. Eis em mim a droga de quarentena perene dos quarenta! Minhas mãos se aferram a alguma superfície mais próxima em busca de alívio, como se cada um de meus voos de cera não fosse só mais um e outro e outro um. Minha vez: aperto as mãos do gerente, apesar de não me sentir à vontade, sendo educado, com a cabeça prestes a explodir. Ele me dá curso de oratória, em volume moderado, me convence a não resgatar umas minguadas economias e me oferece alguns planos econômicos suplementares. Cientifico-me de estar em um Áden vermelho. O pior, é que nada anda me exaltando.Talvez se eu gritasse, talvez se eu gemesse, talvez se eu tocasse a valsa vienense, talvez se eu chorasse, talvez se eu sumisse, talvez se eu morresse, mas, não. Além da conta, sem adendos, lastimo a pirraça que me faz insistir em sobreviver, maldigo a esperança (Cinzas do sonho.) Reservo blasfêmias na alcova de exceções à regra. Examino com olho clínico freudiano meu temor a Deus sem tamanho. Sinto baixíssima minha autoestima. No tão nada mais da cidade, tudo a que sobrevivo é feio: as ruas, os automóveis, as casas, as lojas e até as mulheres mais lindas, silepsemente escrevendo. Nesta desconfiança total, o pensamento segue rastros. Em minha pressa, sou lento. Nuvens esparsas erram, de acordo com planos não traçados. Ao redor, o espaço se acha cheio de hipócritas mortos de fome com o Cristo na barriga. Em minha pobreza abjeta, ressurge, a cada momento, um velho sentimento de asco pelas crias de Deus às quais tanto me assemelho.

- Edson Lopes, no livro Combustível, Metal e Poema

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Ironia

Ela me disse
ao fechar nosso romance,
com chave de lata,
para eu não ficar triste,
que, morrer de amor,
não mata.

- Edson Lopes, do livro Alice no País da Mesmice, 2000

Ampulheta

Há muito de amargo neste peito largo.
Letargo de gelada retina.
Desafeto que se encerra 
em planos mal forjados.
Todos os passos dados em falso.
Sou escuridão, sou neblina.
Relógios mortos.
Pensamentos tortos.
Tédio criador, eis aqui a criatura.
Olhar de relance
o odioso espelho do instante.
Procuro algum rastro de alegria
na triste figura deste cavaleiro andante.


 - Edson Lopes, do livro Antalogia Poética, 2009

Edson Lopes

Poeta, nasceu em Curvelo, MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português. Em suas palavras: “a literatura em minha vida tem como principal o papel de me salvar de mim. Da grande bobagem que sinto de me desintegrar, de escapar para o vácuo. A literatura me lembra da existência de muitos mundos além do meu, mundos a transfigurar, a reinventar. Sinto-me um poeta, um médico, um louco, uma criação criadora. Penso que literatura barranqueira é aquela produzida por aqueles que viveram, vivem ou viverão à beira do Rio São Francisco, não a que tenha de se ater aos temas provincianos da paisagem do rio ou dos elementos em seu entorno. Afinal, pensamento e emoções navegam muito além de um único tema, de um único espaço. Principalmente no que concerne à poesia, a deusa de seres do outro mundo daqui.”

Contato:
Facebook: Edson Lopes


De Fernanda para Brenda, de Brenda para Fernanda

Brenda, o verbo sorriso caminha comigo pelos dias. Olho para o mundo e o tom é amarelo. Mesmo melancólica, sorrio alaranjado. Deve ser o signo, ou o meu cabelo. Resolvi manter o cabelo alto: lisa não é a minha textura. Talvez haja texturas aqui dentro. Fui pintada por muitos artistas, minha amiga, inclusive, artistas crianças. Crianças são umas sábias, não são? Ao invés de ver o mundo em um só tom, elas veem arco-íris em toda parte; e isso é sabedoria: saber-se que só se sabe nos plurais.

Fernanda, sua alegria me humilha. Não consigo ser tão feliz assim. Mesmo a minha felicidade sangra. Olho as pessoas na rua: mesmo rodeadas por outras pessoas, ou por compras, ou por crianças, sua expressão física é de dor: as sobrancelhas se juntam em direção ao nariz, e elas suam, e elas desanimam. Suor é lágrima despudorada. Não vejo nenhum prêmio no suor. Tentei academia, mas chorei demais, suada. Tentei olhar o dia, mas o calor do norte de Minas racha. Rachaduras são as veias e artérias do meu peito: ao invés de bater, grito.

Brenda, entendo a sua agonia. Não pense que promovo a ditadura da alegria. Ser alegre e colorida também me aprisiona: somos feitas de fogo e cinza. Perceba, o mundo não se fecha em categorias: somos duplas, contraditórias, isso, de enxergar o mundo quadrado deste jeito, faz parte dessa síndrome de adultice aguda com a qual nos deparamos: crescer dói sobremaneira. Crianças também sofrem. Todo mundo sangra. Mas há cor no vermelho: é preciso enxergar a beleza da contradição das coisas.

Seu discurso me encanta, Fernanda. Qual o significado do seu nome mesmo? Deve ser algo de anjo, ou de muito belo. Você sempre plantou flores por onde esteve, e isso não é culpa sua, nem entendo como ditadura: deve ser coisa de signo, ou de cabelo. A gente escolhe como vai ser até certo limite. Da cerca para lá, acho que é o universo. Meus cabelos são lisos, gosto de me perder pelas madrugadas e de escrever conforme consigo. Escrever também me deixa suada. Mas não desisto: mais uma vez porque sinto, cada vez com maior firmeza, que algo além de mim me governa.

Sinto saudade da nuvem onde você se esconde, Brenda. Você é muito nebulosa. A neblina é sua casa. Mesmo no calor do norte de Minas, você é chuva abafada.

Fernanda, acho que podemos resumir nossa conversa: algo como dia e noite, sol e lua, preto e branco, alegria e tristeza, que não se anulam, mas se complementam. Pois até a nuvem desaba, até a mais escura nuvem, quando cai, faz nascer a planta. E a cor se pinta. 

Douglas de Oliveira Tomaz

Taurino com ascendente em peixes, terra e água, barro, lama; norte-mineiro, escritor, assina o blog pessoal www.abrigosdevagabundo.blogspot.com.br e é o idealizador de O salto; por último, perdeu o medo do sol.

Contato:
E-mail: douglasdeoliveiratomaz@gmail.com. 



Quem somos

Pirapora e Buritizeiro, norte de Minas Gerais, vivem uma nova onda de movimentos artísticos e culturais, principalmente a partir de atividades ocorridas ao longo do ano de 2014 e promovidas por artistas organizados em torno de associações e grupos autônomos. Essas atividades, além de visarem ao resgate da cultura barranqueira, pretendem reinventá-la, pintá-la em novos tons, cantá-la com novas vozes, dizer com as palavras em novas reorganizações de sentido, declamá-la, gritar que existe - e existe renovada. Dentro desse contexto, surge O salto, propondo-se ser rio de onde peixes mostram-se, comunicam-se, nadam. O berço ainda é o mesmo: Rio São Francisco que nos banha, devora, devolve. Movimento eterno, produtor de belezas.



Concepção e curadoria: Douglas de Oliveira Tomaz.
Apoio e concepção visual: Davi.  
Ilustrações: Vinícius Ribeiro.



Contato:

e-mail: osaltobarranqueiro@gmail.com
fanpage: O salto

Quem somos

O Salto é pulo de peixe. 


***


Concepção e curadoria: Douglas de Oliveira Tomaz.
Apoio e concepção visual: Davi.  
Ilustrações: Vinícius Ribeiro.



Contato:
e-mail: osaltobarranqueiro@gmail.com
fanpage: O salto