segunda-feira, 20 de abril de 2015

“Todo mundo tem medo do bairro do outro” – Bairro Nossa Senhora Aparecida, Pirapora (MG)

Estacionamos o carro na antiga rua dos cabarés, batizada oficialmente como rua Rio Grande do Norte. Ouvi dizer que, na época do transporte fluvial pelo Velho Chico, quando Pirapora foi um ponto importante de carga-descarga, embarque-desembarque, nesta rua concentraram-se muitos cabarés, disse para David, que olhava perdido para as casas tentando encontrar resquícios desse passado narrado. É mesmo? respondeu-me admirado, gente, que beleza.





 

Assim iniciamos nossa caminhada pelo bairro Nossa Senhora Aparecida, berço da cidade de Pirapora (MG), bairro de pescadores, lavadeiras, marujos, mulheres da vida, gente que ia e vinha, seja de casa pro rio, do rio pra casa, ou do rio para outros lugares. Pirapora sempre foi cidade de movimento – ao contrário do que pensam alguns atuais moradores que só veem permanência no lugar onde o Rio São Francisco está em constante ir embora.

Era tarde de uma quinta-feira, dia comum, exceto pelo sol brando, ideal para caminhadas. Mais à frente, um grupo de crianças brincando correu em direção a nós, que tirávamos fotos de velhas construções em ruínas: o que cês tão fazendo? perguntaram-nos. Tirando fotos, algum de nós respondeu. E vocês só tiram fotos de casa velha? Não, de qualquer coisa relacionada ao bairro, respondemos entre risos. Ah! – saíram correndo, de volta para a brincadeira.

Outro morador, que ajudava os meninos a confeccionar uma pipa, também chegou até nós, incomodado com esses dois rapazes desconhecidos tirando fotos de seu pedaço. Chegou num tom de quem cuida da cria, meio desconfiado, demarcando território. Logo dissemos que estávamos fazendo um ensaio fotográfico sobre o bairro, o que lhe desfez os vincos da testa. Fiquem à vontade, nos disse no final da curta conversa, como se abrisse as portas de sua casa, autorizando mexer na geladeira.

Nessa hora, Ludmila, também moradora, cruzou a rua falando alto em tom de deboche com esse morador que nos recepcionara. Ludmila anda tranquila pelas ruas do bairro, trocando palavras com qualquer pessoa que passa, como um eixo articulador de piadas e conversas. Olhou-nos de relance, tirou sarro do jovem morador dizendo que ele estava grande demais para brincar de pipa, ao que ele respondeu com outro sarro, coisa de gente íntima. Prosseguimos caminhada. Ludmila entrou numa casa, depois saiu, sempre nos olhando de relance, curiosa, também desconfiada. Desconcertados, chegamos até ela, pedindo entrevista. Ludmila parece ser dessas pessoas sempre prontas para tirar foto, tirar sarro, impor-se. Parecia também estar em todos os lugares, ser alguém importante para o bairro, embora tenha nos confessado morar ali apenas há cinco anos. Parados na esquina, nos disse:


– Todo mundo tem medo do bairro do outro. Eu adoro meu bairro! Aqui antes era perigoso, não dava nem pra andar na rua, com medo de bala perdida. Hoje tá tranquilo.

– O que mudou? – perguntamos.

– Aí cê me pegou. Não sei. Talvez o povo ruim tenha sido preso.

– Talvez esse povo tenha tomado jeito.

– É.


Após a conversa, como suspeitado, autorizou a foto sem nenhuma resistência.




***

Dona Maria, 83 anos, colocava o lixo na calçada de casa, numa das muitas vielas do bairro. Nossa conversa rendeu bastante, quase puxamos cadeira, pedimos café – quase.


– Moro há 70 anos em Pirapora, vim da Bahia. No bairro Aparecida, moro há 55 anos. Eu que construí minha casa, quando eu cheguei só tinha canudo, conhece canudo? Um mato que dá assim, pontudo.

– Outra moradora me disse que aqui antes já foi perigoso, mas melhorou. A senhora acha que melhorou?

– Não sei. Será que já foi mais perigoso? Não sei. Nesse meu pedaço é tranquilo, de vez em quando acontece umas coisas ali detrás, esses trem de droga. Mas hoje todo lugar tem, né? Todo lugar tem desacerto.


Dona Maria serenamente nos conta como foi ter sua casa inundada pela enchente de 79 e, transportando a questão da moradia para a atualidade, revela, com certo assombro, que os moradores estão aterrando a lagoa que apelida o bairro e construindo casas sobre. Nem existe lagoa mais, diz. E o rio? Não gosto nem de ir lá, complementa, referindo-se à atual seca enfrentada pelo São Francisco. Dona Maria gosta de conversa e, após um grande silêncio, denúncia da prosa que finda, pergunta, meio afirmando: Cês tão procurando saber disso tudo aí pra escrever depois? É, respondo. E, sorrindo, balança afirmativamente a cabeça, como se eu respondesse o óbvio, como se já tivesse passado por muitas entrevistas e estivesse calejada dessa gente desconhecida que aparece fazendo perguntas do nada. Sobretudo, Dona Maria parece gostar dessa gente, embora já a conheça o bastante. Antes da despedida, reluta para tirar a foto, diz estar velha demais e detestar fotografia. Após muita insistência, posa desconfiada, sem qualquer entrega.




***

A visita terminou na Rua da Liberdade, lugar de festas juninas memoráveis, segundo contam. Entramos na ONG Afrogerais, que realiza trabalho de resgaste da cultura afro-brasileira com crianças e adolescentes do bairro, oferecendo gratuitamente oficinas de capoeira, bordado e dança. Lá encontramos Ivani, moradora da Vila Branca, outro bairro de periferia da cidade, mas assídua frequentadora deste. Cansados de caminhada, repousamos no exuberante jardim da casa e na fala de Ivani que, distante o suficiente para generalizar na análise, mas próxima o suficiente para empunhar afeto no que diz, assim definiu o Nossa Senhora Aparecida:


– É o termômetro da cidade. Se você quer saber se o carnaval tá bom, qual político vai ganhar, vá no bairro Aparecida. Acho que pela cidade ter nascido aqui, o bairro tem uma energia diferente.


Fomos embora conscientes de não termos percorrido nem um por cento do todo. Tudo é muito grande visto de perto. Por outro lado, algumas impressões não cabem em palavra alguma e não estão aqui. É preciso pisar para sentir. E o bairro Aparecida merece ver contada sua história. Existe algo muito forte enterrado aqui, disse para David, que se manteve calado para desenhar depois. Algo enterrado, mas que transborda pelas pichações nos muros, pelo alto número de praticantes de umbanda e candomblé silenciados, pelo histórico de marginalização, pela arquitetura barranqueira em ruínas. A palavra fúria, pichada em diferentes lugares, ecoa em minha cabeça enquanto saio do bairro. Pode ser uma boa definição para este algo enterrado, mostro a David. Ele concorda e sorri, cintilando belezas.