sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Pichilingas


O cão abre alas do mundo quando vê a enorme escavadeira passar na rua, um automóvel realmente além de barulhento. Há uma fresta quase no alto do muro por onde o animal aprendeu a saltar. Preciso consertá-la, mas ando desanimado demais. Prefiro me perder em inércia e pensamentos vãos. Para justificar o meu ócio, escrevo. Em prosa. Ando meio avesso aos versos. Há poucos dias, dei uma injeção contra carrapatos em Teimoso. O nome dele. Do cão. Ele não tem muito estilo de brabo, só que faz muito barulho ao aproximar de alguém em quem nunca pôs os olhos. Acho que seria capaz de morder um desavisado. Devia entender: ao pular o muro, cairá em terreno cheio de mato e de carrapato. Muitos carrapatos.

Por esses dias, Teimoso tentou o tempo todo cruzar com a cadela, a pequena Lili. Mas, por mais que tente, seu pênis não chega à vagina da cachorrinha. Ele a perturba com tamanha insistência, sem conseguir cruzar. Ela se estressa e o agride. Ontem, no quintal, achei umas penas verdes. Eram de uma maritaca. Muitas penas. E sangue. Deu-me pena. Teimoso ou Lili devem tê-la pego. Às vezes capturam e comem algum passarinho. Sinto-me entediado o bastante para achar que escrever não é tão essencial, pelo menos por enquanto. Queria um cigarro, mas não fumo há bem tempo. Razões para não recomeçar não faltam. Saudade nenhuma de quando tive tuberculose. Queria beber. Mais tarde, talvez.

Confiro uma mensagem no celular. É de Vanessa. Diz que virá aqui. Saio e a espero, debaixo da árvore, na porta de casa. E vem, de fato. Empresto-lhe O Pêndulo de Foucault, do Umberto Eco, e, já aviso que, às vezes, o livro é monótono, de uma temática complicada. Ela diz que o intelecto precisa ser exercitado, mesmo se forçá-lo liberar um bocejo e outro. Vanessa lê tantos livros! Exageradamente! Para quê ler tantos livros? Ela ainda mora na H. E., naquela casa onde também morei. Traz, para mim, algumas goiabas com polpa vermelha. Adoro! Traz ainda as mesmas reclamações que eu fazia da proprietária, dona Clemência, senhora que beirava seus 80 e poucos anos de vivência, a qual sempre me pedia para fazer reparos na casa, porém se recusava a que eu fizesse descontos do valor gasto por mim no aluguel.

Vanessa tem uma voz doce, terna, rumor manso de rio, diria algum poeta. Rio por dentro de ela falar dos pardais, tentando impostar raiva na voz. “Não consigo captar nenhuma nota de raiva em sua voz.” Se eu fosse cego, ficaria apaixonado, não que Vanessa não me atraia aparentemente; quem sabe enxergasse o amor na escuridão ou ficasse no mínimo quedo sentimentalmente. “Cantam de manhã, bem cedo, à tarde, à noite. Aliás, dizer que cantam é um eufemismo. Grasnam, timidamente.” Ela diz. “Li em algum livro de História que eles vieram com os portugueses, em galeras, em 1922.” Opino. Mania de tentar fazer mágica intelectual e tirar algum conhecimento da cachola na tentativa de impressionar. Ela ri. Um riso bastante gostoso. Os óculos pequenos tentam em vão delimitar os olhos grandes e profundos na face mulata, uma boca repleta de carne, cheia de dentes bastante brancos. Tem um corpo quase perfeito que, sem ser totalmente perfeito, é adorável.

“Além do idioma, grande contribuição. Coçam pra caramba!” O comentário dela remonta à época em que pichilingas me proporcionaram uma alergia e me encheram de bolhas vermelhas, pensei que fosse herpes, enquanto minha namorada, Márcia, naquele entretanto, pedia-me um tempo, prognosticava-me cirrose. “Moço, moço, você morre e a cachaça fica aí.”

Vanessa só fala praticamente da mesma coisa. De livros e de seus autores preferidos. Mas de livros em prosa. Diz que poesia é chata e exige pouco esforço de quem as produz. Não retruco, apesar da vontade. Penso que as mulheres adoram discutir e a melhor forma de fazê-las felizes é deixar que deem a última palavra.

Visualizo mentalmente a casa H. E., quando Vanessa se vai. Não gostava de lá. Pouco espaço. Paredes de um amarelo esmaecido. Canos a vazar. Frestas em todo canto. Janelas de madeira, com travas. A mínima possibilidade de cultivar plantas, um de meus hobbies. De dona Clemência ouvi dizerem que anda doente e infeliz, depois que o cão vigia de seu quintal morreu ao comer um rato moribundo envenenado. Casa velha tem dessas coisas. O buraco, no muro prestes a cair, onde, Feroz, era assim que ela chamava o cão, enfiava as patas fortes ou o focinho e, de lá, tirava qualquer bicho, incauto, que entrasse, estraçalhando-o com sua mordida fatal.

Olho Vanessa se afastar. Gosto de seu jeito de caminhar, balançando os quadris. Penso na Garota de Ipanema e não há som in off, mas viajo no tom clássico do Jobim. Adentro meu exílio. “Areia demais para meu caminhãozinho!” Digo a mim mesmo, depois de olhadela derradeira pela fresta do muro, por onde meu cão costuma pular. O sol da tarde castiga.


***


Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).


Ilustração: Vinícius Ribeiro.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Chão


O filho mais velho voltou para casa, mãe já não estava. Os filhos mais novos cuidavam de tudo: limpavam, cozinhavam, criavam o rumo do resto. O filho mais velho entrou pela casa com olhos assustados – susto inadmitido –, olhos assustados de quem entra num lugar novo, onde nunca tinha pisado. Parecia criança em loja de brinquedo, mas triste. Os filhos mais novos trataram-no com naturalidade, era o combinado tácito, sem acordo verbal ou escrito. Todos entendiam que ele, distante desde que não havia mais mãe, carecia deste novo pisar na velha casa: todos agora precisam reconhecer-se.  

Caetano cantava que amanhã será um lindo dia da mais louca alegria, Caetano cantava e os filhos mais novos faziam comida, enquanto o filho mais velho percebia que os móveis já não estavam no mesmo lugar, paredes estavam pintadas de outra cor, o cheiro da comida mudara e havia flores espalhadas pela casa, como nunca houve. Só o azulejo do chão continuava o mesmo, e o chão, permanente como a dor que não passa, era o grande deus que anunciava a mudança: embora tudo se modifique, pise. Pisar é uma necessidade.

Os filhos mais novos, enquanto cozinhavam e conversavam banalidades para disfarçar o susto do outro, observavam o filho mais velho e lembravam-se – todos ao mesmo tempo, mesmo sem saber, família que eram – lembravam-se do momento em que pisaram os seus pés, pela primeira vez após tudo, naquela casa de ontem. Todos se doíam, porque lembrança de morte dói, mas era preciso manter firmeza: a hora era de o filho mais velho chegar, ninguém mais.

Ele andava pela casa, fingindo que já a conhecia, afinal vivera por ali todos aqueles anos e nada mudara, nada mudara – chão gritava. Perguntou dos outros filhos, os do meio, onde estava Cícero? desfez casamento; e compadre João Neto? está construindo; e Bia? agora arranjou emprego em dois turnos. O agora era uma presença que o torturava. Mas fingia estar bem, caminhava pela casa.

Até que, na sala, um pedaço quebrado do azulejo jogou-o no chão. Os filhos mais novos, na cozinha, não viram: distraíam-se com a cebola, o refogado e a saudade. O filho mais velho não se levantou da queda, manteve sua cabeça baixa, as mãos tocando o chão que, enfim descobrira, apesar de igual, já não era o mesmo, como as paredes, a disposição dos móveis e tudo. A casa mudara. O homem caído preparou na face o choro, que não era dor de tropeço. Insistente, Caetano dizia que amanhã será um lindo dia e o filho mais velho, deixando cair lágrima seca, completava a letra da música, sem melodia, sem graça, ilustrando com seu corpo, na posição em que se prostrava, o reverso, a força contrária à felicidade que há: hoje não, hoje não será.


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Douglas de Oliveira Tomaz, nascido em 1993, é autor do blog pessoal www.abrigosdevagabundo.blogspot.com.br, recebeu uma menção honrosa no concurso literário do Clube de Escritores de Ipatinga – MG (Clesi), edição 2013, e possui textos seus publicados pela Revista Jangada. Em 2015, lançou de modo artesanal seu primeiro livro de poemas: Escorre. Atualmente, reside em Pirapora - Minas Gerais.


Ilustração: Vinícius Ribeiro. 

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Frankenstein


Não que tenha estudado muito. Uma olhada ali, outra acolá, em textos mais literários que em técnicos. Se houvesse doenças chamadas didaticofobia ou estruturofobia, se seus sintomas, persistindo, pudessem levar o enfermo à morte, eu já teria dito alguma frase de efeito a quem é par ou ímpar para mim. Certamente, usaria uma frase de efeito. Já ouvi que é muito “clean”. Achei lindo, e, para compensar quem falou, dei-lhe um sorriso, como se tivesse entendido. Eureca! Eu diria: Goodbye forever, friends of my heart! Que se exalasse meu último suspiro! Eu descansaria eternamente num berço de pleonasmo esplêndido. Não digo que tenha estudado muito. Mas foi um domingo inteiro jogado a algo muito pior que as traças convencionais dos meus fins de semana solucionar aquela prova. Alguns meses se passaram. Passei. Alguns candidatos, aos poucos, foram nomeados. Demorou, mas fui nomeado também. Meus colegas me felicitaram, sorridentes: “Parabéns! Seu nome foi publicado!”

Entre as várias coisas às quais sou avesso mora a necessidade de ir a hospital, de me defrontar com médico(a). Mais uma fobia: a de ficar doente. Na minha profissão, penso, devia ser proibido adoecer. Parodio, neste instante, algo do póstumo memorável Drummond acerca das mães: Fosse eu rei do mundo, baixava uma lei: Professor não adoece nunca! Empurrar com a barriga e uma dor de estômago considerada ocasionalmente leve vira uma úlcera. Uma tosse renitente seguida de inocentes insólitos escarros rubros despercebidos levam um infeliz ao estágio de pneumotórax.

Abomino ter de jogar fora os parabéns que me são dados por alguma vitória. No meio docente o eco de uma frase repercute no cérebro de qualquer humano que usa apenas dez por cento de sua cabeça animal. 1.1.: louros! 1.1.: orgulho! 1.3.: desdém! “A prova fora tão fácil! Não sei como tão poucos candidatos conseguem passar. Eta povo burro!” Falas de meu amigo, o Moura.

Faz um bom tempo que para candidatos a cargos de professores aprovados em concursos, nomeados, possam tomar posse dos devidos, pedem-se exames de urina, sangue, pulmão, coração e, principalmente, de garganta. Em seguida, a perícia. Não queria usar este verbo no pretérito imperfeito, mesmo sendo o texto aqui uma pretensa crônica. O nome crônica fora do contexto de gênero literário me lembra um sinônimo de grande expressão ao que eu sentia então, mais de alma que de corpo: doença incurável! Et voila: era mês de julho, quase fim de recesso. Eu terminava alguns exames e era considerado apto em todos por alguns médicos. De urina, de sangue, de pulmão, de pressão. Restou-me fazer o de garganta.

Fazia frio. Eu me sentia cansado. O dia anterior fora difícil. Eu havia falado muito alto, em sala de aula, para tentar fazer alguns conceitos gramaticais, morfossintáticos, pelo menos parecerem chegar aos alunos do turno da tarde. À noite, no cursinho pré-vestibular, uma voz alta costuma ser imprescindível. Seguinte: pulo a recepção, a ficha, sento-me na cadeira do consultório do doutor. “Bom dia.” Pigarreio. Ele me olha atravessado, coloca uns óculos de lentes muito, muito claras. Lê minha ficha. “Você acha que sua garganta não tem nenhum problema, professor?” Desde aí, tive a impressão de que o otorrinolaringologista trabalhava árduo para provar que os profissionais de educação aprovados em concurso são roucos.

O doutor me pediu que segurasse a carteira de identidade apertada contra o peito com as duas mãos, faltou pedir para que eu sorrisse por estar sendo filmado. Eu estava mesmo, conferi-o, ao olhar minha face patética no televisor. Quando ele colocou uma luva e começou a me pedir para dizer repetidamente algumas vogais, em tons, ora graves, ora agudos, vogais de sons, ora abertos, ora fechados, senti parte da privacidade de meu corpo invadida totalmente – o céu ou inferno de minha boca. “É, professor, a coisa está feia.” E pelo vídeo me mostrou uma fenda em minha garganta semelhante a, como todas as gargantas, a uma vagina. Minha garganta, entretanto, sem o abre-fecha, fecha-abre, um fato comum à maioria das gargantas.

Ouvi como eu proferira pessimamente as vogais. Porém, o que mais me impressionava era o ar de júbilo do médico que parecia ter transformado um preconceito em conceito. Minha expressão inicialmente patética no vídeo pareceu dobrar de intensidade com a decepção e esforço de segurar a identidade apertada contra o peito a vocalizar com a língua presa. “A! I! E!” Parecia um meliante recentemente iniciado no crime sendo fichado, incapaz de responder a um interrogatório. O doutor escreveu algumas frases que não consegui ler em um pedaço de papel, e, pelas suas falas me considerei inapto. Fiquei triste e pensei em desistir da fatídica posse. Mas meus bons colegas de profissão me aconselharam a procurar outro otorrinolaringologista para fazer o mesmo exame.

Outro consultório particular, a segunda reprovação da garganta fendida. Ao menos, de tal vez, uma médica não me deu a carteira de identidade para segurar contra o peito e não me senti com pose de presidiário. Complemento: não queria admitir por ter ela me reprovado, mas foi muito educada no exercício de sua função. Culminância da ideia: convencido por amigos, colegas de trabalho, pessoas que torcem pelo meu bem-estar físico, social, espiritual, cultural, etc, fui ao SEPLAG, em Montes Claros – MG, para a inspeção médica final.

Esclareço que eu andava muito deprimido, cansado, tristonho. Lembranças das aulas de Latim de meu finado professor Paulo Afonso: “Um homem sem anima, um homem des-anima-do, um homem sem alma, um saco de batatas.” Talvez seja a explicação de eu ter sentido um olhar de menosprezo dos profissionais de medicina ali sobre mim. Reflexão inerente, digamos sem importância, digamos desdenhosa em meu pensamento: “Médicos e advogados nem tanto estudam para serem chamados de doutores.” Eles não têm mais o status social de algum tempo, é o que atualmente se comenta. Acho que as pessoas criam determinado biótipo (confundo com preconceito) para determinadas profissões, algumas parecem adorar sentir em posição inferior outras às quais julgam superar. Um dia, o poeta piauiense, José Renato, após eu lhe dizer que, certa poeta me dissera que eu tinha cara de poeta, ele retrucou, entredentes: “Ela te disse isso para fazer fita. Alguém deve ter falado isso a ela. Reprodução de um discurso que a agradou. Fazer uma média. Por falar em média, pensei em dose. E, para mim, você não tem cara de poeta. Tem cara de tomador de birita.”

Naquele momento, qualquer exame que eu fosse fazer a voz enrouqueceria diante dos sujeitos e sujeitas de vestimenta branca, por mais que tentasse a prosa do própolis. Não adiantaram as cinco dúzias de maçãs comidas nos dias anteriores à perícia. Nem as quatro maçãs comidas escondido no banheiro antes do exame. Eu tomara trauma de expor minha garganta a médicos. Quando a fonoaudióloga perguntou no corredor pelo meu nome, levantei e me senti reprovado pelo seu olhar. A voz emitida com fones de ouvidos ligados ao computador parece repleta de vibrações defeituosas sob o olhar da médica que, ei de convir, apesar do ar de desdém, é bem atraente.

Depois, teve um exame psicológico, umas perguntas – pegadinhas – cheias de contradição, às quais tive de responder no computador. Ao fim, fui reprovado mais uma vez por um médico, o qual me fez montanhas de perguntas, sobre mim e minha família, perguntas sobre as quais não consegui mentir como me haviam aconselhado a fazer os candidatos aos cargos de professor com quem eu conversara. O doutor fez em mim alguns exames. Por fazer. A última do rol de perguntas inúteis, feitas pelo médico que, penso, as fizera por protocolo e já me reprovara no momento em que pisei no seu consultório foi: “Você é bravo a ponto de se revoltar violentamente, quando lhe dão alguma notícia ruim?” A meu mentiroso meneio de cabeça, entregou um certificado de INAPTO que destacou de uma folha.

À custo me contive para não agredi-lo verbalmente e fisicamente pela brincadeira de mau-gosto de criar um abjeto momento de expectativa para o meu coração que ali se sentia demais saturado. Como foi desoladora a volta de Montes Claros a Buritizeiro. A frase: INAPTO! INAPTO! INAPTO! feito ritornelo de um poema macabro na cabeça a explodir. Entrei com um recurso. Recebi a resposta ao supracitado uns dois meses depois de enviado. O cruel adjetivo INAPTO! Pedi aconselhamento ao setor jurídico do Sindicato dos Professores do Estado, mas os procedimentos que fui orientado a buscar para a possibilidade de êxito me desanimaram. Trabalhos de Hércules. Fora o trauma passado a sentir por médicos. Gostaria de nunca mais ver um só em minha frente. Preciso de forças para trabalhar, aposentar, pagar minha cova rasa, com esta garganta fendida. No mais: paz e bem, bem ou mal!


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Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).


Ilustrações: Vinícius Ribeiro.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Feliz ano novo, ou o ano em que fomos todos paridos


“Estamos em 2015”, diz um político na internet. Ele quis dizer, com essa célebre asserção, que precisamos evoluir de alguma forma. Não acompanhei a discussão, mas na certa se referia a algo relacionado a gênero, violência, ou legalização do aborto. Poderia ser também ao contrário, e o cara só quisesse dizer que estar em 2015 é um ano auspicioso para prender jovens delinquentes. Melhor que isso, ele poderia apenas estar fazendo uma referência à seca, lembrou-se de 1915, lembrou-se do quinze e, 100 anos depois da maior seca já documentada, acometeu-lhe o fato de que estaríamos envoltos do mesmo ciclo. Político ligado em consciência ecológica talvez, em gênero e essas coisas que se passam em 2015, coisa rara hoje em dia.

Há uma crença no imaginário esotérico de que anos ímpares são os anos de maior prosperidade e essa lengalenga toda que acompanha o sentido de ser próspero. É como se se esperasse um ano de desastres e outro de bonança, uma alternância que seria bem justa no final das contas. Daria pra respirar em meio à desgraça se depois de 365 dias tudo fosse ouro no final do arco-íris, e o único problema que nos acometesse fossem os anões guardiões do ouro que tentamos a todo custo, em bró de fantasia, levar pra casa.

A Globo fará uma retrospectiva emocionante no final do ano, promete suor e lágrimas aos telespectadores na hora de acompanhar as notícias mais importantes. Com certeza veremos novamente os naufrágios, crianças mortas, conflitos, congresso em chamas, campanhas, fogo, fogo, fogo, fogo (alguém descuidou do cigarro aceso), e em meio ao incêndio alguma figura que se destacou no ano, por bondade ou honestidade, tão defendidas pelos éticos padrões sociais. Aposto que só veremos o mais importante; não vai ter nêgo barrado em ônibus não, as praias da zona Sul continuaram bem habitadas. Todos os lados sul do país continuarão com sua morosa paz ano que vem e a Cantareira se encherá de água novamente, Deus queira.

Pensemos nos anos que passaram, e coloquemos em pauta questões de suma importância, questões que definam o sujeito que você foi e que você é hoje em dia, no tumultuado ano de 2015. Por exemplo, pedi no café da manhã, desses quase 365 dias, entre essas lanchonetes e padarias encardidas, um grande número de pães de queijo e café. Isso demonstra que mantive um padrão durante o ano, não oscilei no cardápio, aliás, nem mesmo quis experimentar outra coisa pela manhã. Mas ano que vem será diferente, ah, com certeza, totalmente diferente.

– Extra, extra! Parem as máquinas, revejam as notícias do dia! Aqui pro norte, 2016 ainda será um ano de naufrágios, é o que diz os tabloides regionais, a crítica especializada do pessimismo.  Talvez o sertão vire mar nas palavras de algum cantador daqui, mas por enquanto...

Não esperemos nada diferente, mas vamos manter o ritual da mudança, ok? Ah, não sabem como fazê-lo? É fácil, vem aqui que eu lhe ensino. Olha, para ter dinheiro, vista uma roupa íntima na cor amarela e guarde uma nota na carteira durante o ano todo, certo? Tá... eu sei que estamos em crise e blá blá, mas cê quer ter prosperidade ou não?

Segundo passo, coma sete sementes de uva na passagem do ano. Eu não sei bem pra que serve isso, mas dizem que funciona, e não se esqueça de pular as ondas, hein? Se não houver mar, apenas tente não se afogar de outras formas. Por último, mas não menos importante, diga em alto e bom tom: “ano que vem será o meu ano, tudo novo, tudo diferente.”.

Agora, depois dos rituais, se vigie e ore pra não passar o primeiro de janeiro lambendo o prato de comida requentada do dia 31 de dezembro. Quanto a mim, cuidarei para ao menos não comer tanto pão de queijo.


P.S.: devo dizer que em 2015 tropecei à beça, vou cuidar pra manter o equilíbrio no ano que se segue.

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Brenda K. Souza, estudante de letras, 23 anos, natural de Buritizeiro-MG, sem casa no momento. Está, atualmente, associada do clube nacional do otimismo. Escreve quando não pode, e é quando não deve, isso para omitir detalhes.

Ilustração: Vinicius Ribeiro. 

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Caos-base


O que eu queria, na verdade, era ir para o mato, para o remoto e, até para a morte, para esquecer o passado recente. Há um tolo em mim. Ele aguenta, mesmo que trema de ânsia de abandonar tudo, mesmo agora, sem trema, ele aguenta. A gente não prevê o futuro. Depois culpa o país, o governo e sua má administração em desapreço às promessas de campanha. Quando Pandora parece ter trocado sua caixa de pegadinhas pela bolsa de valores. Tudo bem mal.

Chego ao mato, sem gato e sem cachorro. Espero melhoras para estes dias doentes. Sempre fui severinamente forte ante as piores situações. Porém, dói ver tanta gente no mesmo pau-de-arara. Dói ver tantas expressões inexpressivas de quem sofre e força alegria, a ignorar a tempestade que circula em torno de si.

Lembro-me de quando eu era pequeno. Era assim também. Na época da falta de chuva, eu costumava ouvir minha avó, meu colo vespertino, a me balançar e cantar uma canção cristã: Chuva de graça/, Chuva pedimos, Senhor/, Manda-nos chuva constante/. Chuva do consolador/. Minha avó, transformadora do abstrato espírito em concreto, já à beira dos seus cem anos, viciada em mascar o fumo preto que preservava seus pouquíssimos cacos de dentes apodrecidos, quando não a própria folha verde que secava na chapa aquentada pelo borralho da fornalha na cozinha. Além disso, o gosto por pimenta-de-macaco na comida, a qual tinha o mesmo efeito do elixir do Fu Manchu, lido, relido e sonhado por mim nas revistas do Shang-Chi, o Mestre do Kung-Fu.

E a molecada da infância? Valtinho, Serginho, Chapinha, Mr. Satã e outros, além de mim, rabiscando o sol quando as ruas encascalhadas e cheias de buraco eram a mais pura enxurrada em qualquer canto onde carvão e pedaços de toá pudessem se transformar em imagem. Da época das enchentes, memorizo minha mãe rezar para parar de chover: Santa Clara, clareia/, São Domingo, ilumeia/, Sai, chuva, vem, sol/, Enxugar o meu lençol/!

O que quero, o que todo mundo quer, faz a graça do sorriso parecer forçado. Cachaça que não entorpece o pensamento a minar o cérebro. A fuga intensa intencional dos problemas é só desejo. A ótica de que sem problemas não há solução é, provavelmente, tão prática quanto morrer de dor de dente ou de uma dose de cicuta. Quem disse que a maldita crise é oportunidade de crescimento? Crise na infância, na juventude, na velhice. Crise no palácio, nas casas, nos barracos da favela, nas fazendas e taperas do sertão. Crise nas indústrias, nos supermercados, nas mesas do consumidor consumido pelo caos de cada dia.

De súbito, costumam aparecer um ladrão e outro para nos roubarem, enquanto buscamos, jamais distraídos, algum remédio ou ao menos um remendo para a situação. Partido: metáfora do homem que rasgou a bandeira da autocrítica. Ainda que com tantos pesares, é inegável dizer que a vida, cachorra lesa, ilesa por milagre do aborto, a vida, primeiro e último suspiro de todos aqui, só não vale a pena para quem não tem alma nenhuma. Não me subscrevo, mas pago a conta, em suaves e/ou se incontáveis, as prestações.

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Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).


Ilustração: Vinícius Ribeiro.