segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Cartinha de amor



Pão, água e luz deviam ser tudo o que precisamos. Sobreviver não basta. Viver nos leva ao ponto. Você não sorriria de forma tão simplória para mim depois de sangrar meu coração com suas unhas grandes pintadas de vermelho. Eu devia ser o atual e não o nem outro. Uso palavras repetidas. Que palavras nunca são ditas? “Aquela cartinha de amor foi o ponto”, diz-me, de forma irônica, meu amigo Lauro. “Não acho que isso tenha sido o fator preponderante”, retruco. “Pare de falar difícil”, ele. E acrescenta: “Você foi burro e artificial em seu procedimento, para não dizer, falso.” Não me importa mais. Não digo não gostar, mas não ligo tanto para você.

Neste momento, estou sobre um morro de uns vinte e tantos metros, uma altura considerável, leve tentação de mergulho. É um dia atípico. O que rola nos ares pode ser chamado de cerração ou de neblina? De longe será? Do Arraial do Tijuco, devaneio. Estrada de Curvelo até Diamantina. Vejo carros, caminhões, motos, ônibus, bicicletas, pedestres, cachorros, vacas, cavalos, lá, no asfalto. Dos ônibus, em particular, você costumava falar comigo, quando éramos pouco mais que criança. Ria dos meninos da vizinhança, com empolgação, ao ouvi-los dizer que os carros em movimento contrários uns aos outros eram deles. “Corre, Combe! Corre!” “Afunda, Mercedes!” Eu lhe dizia que o ônibus da Gontijo era o mais bonito porque o nome se assemelhava, na escrita, ao de duas pessoas junto: Gontijo + ou – Contigo.

E tocava com polidez em seu rosto com as costas da mão direita para sentir minha mão tremer e seu rosto mudar de cor. “Pássaro Verde! É o ônibus mais bonito. Asas da liberdade + o verde da esperança. Mais. Sem menos.” Você declamava tais frases como se se apossasse de um poema condoreiro de Castro Alves. Agora, eu acusaria sua lógica de démodé, mas teria mais astúcia, ao expressar meus argumentos. Liberdade? Mesmo o mais estulto dos poetas sabe que ela só existe se nos encontrarmos presos a quem amamos. Pior: mesmo não sendo amados. Esperança? Na maioria das vezes ela frustra mesmo os passos que chegam longe e as mãos que quase se apoderam do infinito. Tive tal reflexão, sentado numa pedra grande, à sombra do Ingazeiro. Você já não morava aqui.

“Cartinha de amor? Ah! Ah! Ah! Em pleno fim de Século XX? Voltemos ao ponto.” Lauro se fartava de rir de mim. Eu gostava de ler, mas ainda não me havia aventurado no mundo da escrita. Você sabe. Naquela época em que ficou com cabeça e corpo de mulher madura. A pequena biblioteca da cidade quase todos os dias recebia minha presença. À época, não tinha norteamento literário. Lia mais os livros que Beatriz, a bibliotecária, de óculos, uma pose de intelectual, me indicava. Eu que lia os gêneros Western de meu irmão mais velho, as HQs, que chamávamos de gibis. Ante a iminência de praticamente nada para ler, pegava, escondido, romances açucarados de Sabrina ou de Júlia que minha irmã guardava numa caixa sobre um guarda-roupa. Dos últimos, devo ter adquirido a mania de me apaixonar fácil.

Com você foi diferente? Claro, para conquistar seu universo, eu tinha de dizer assim. “Você devia ter chegado nela, dito na lata. Mulher gosta é de atitude.” Falas de Lauro, aos risos e tragadas de cigarro Arizona e copos de Brahma. Falar é fácil. Escrever, não.

Muito tempo eu ficara fora da escola, estava com uns dezenove anos. Prestes a tirar o Primeiro Grau. Vira que você já estava para tirar o Segundo, um ano mais nova que eu. A gente trabalhava na Fábrica de Tecidos Amália Maria. Na fiação. Seção quente. Com muita poeira e pó de algodão. Fazia muito barulho ali. Eu com vontade de lhe falar. Mas havia o Anselmo. Eu percebia a proximidade de vocês. “Não quero atrapalhar vocês dois”, eu lhe disse um dia depois de esboçar uma declaração.

Numa das muitas vezes em que não tinha nada para ler, achei no meio dos livros de minha irmã um, com o título As Mais Lindas Cartas de Amor. A particularidade desse livro é que todos os textos começam com os advérbios de lugar, datas, plausíveis em toda carta, mais a frase: Meu inesquecível amor... Entre as cartas, vi uma em que o eu lírico se evidencia na figura de um rapaz pobre, que, por sua vez, vê na sua paixão clássica Cinderela na janela, uma menina-moça à espera do amor idealizado (Um príncipe do cavalo branco? Do carro branco? Da motocicleta branca? Da bicicleta branca?)

Anselmo tinha uma bicicleta branca de dez marchas que fazia o maior uau no coração de muitas meninas de Curvelo à época. Agravante: era ciclista de primeira.  “Ah! Ah! Ah!” o Lauro. “Você podia ao menos ter criado a carta, poeta, em vez de ter copiado.” Alguns amigos têm mania de tripudiar de nós. Eu: “A carta era de amor. Ela se prestava ao propósito de conquistar o coração de uma garota.” Lauro: “Ah! Ah! Ah! Cartinha de meu inesquecível amor!” Eu ficava enraivecido. “Você sabe muito bem porque meu artificio deu zebra.” Lauro: “Sim. Ah! Ah! Ah!” Odiava a risada dele de mim. Lauro: “O Vitalício, que seria seu cunhado, me contou que a Zenaide, o nome lembra o de Dulcineia del Toboso, Ze-nai-de, nome infeliz!” Concordo, a dona do nome era mais bonitinha que a namorada do Quixote. “Pois é, o Vitalício me contou que a sua pretendida achou a carta de amor, que você copiou, e enviou a ela, num livro. Acho que, pouco depois de você ter transcrito a carta, sua irmã, que por acaso pôs o olho no livro, falou dele ao objeto de sua paixão. Ze-nai-de pediu o livro As Mais Lindas Cartas de Amor emprestado. Eis porque não deu à mínima para o seu amor.”

Ele estava certo. Você não respondeu e nunca mais falou comigo. Sua resposta ao meu pedido de namoro à sério só veio na forma de um não, quando vi você passar por mim, de mãos dadas ao Anselmo. Quando a vi várias vezes aos beijos e abraços com o Anselmo. Casar, ter dois filhos, uma menina e um menino com o Anselmo. Desde então, tem um bosque que se chama solidão na rua de minha alma.



***



Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).


Ilustrações: Vinícius Ribeiro http://pensamentoilustrado.tumblr.com/

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

São Paulo se anuncia



Anúncio de São Paulo

Antes da chegada
Afixam nos offices de bordo
Um convite impresso em inglês
Onde se contam maravilhas de minha cidade
Sometimes called the Chicago of South America

Situada num planalto
2 700 pés acima do mar
E distando 79 quilômetros do porto de Santos
Ela é uma glória da América contemporânea
A sua sanidade é perfeita
O clima brando
E se tornou notável
Pela beleza fora do comum
Da sua construção e da sua flora

A Secretaria da Agricultura fornece dados
Para os negócios que aí se queiram realizar

- Oswald de Andrade


Ao embarcar na rodoviária, encontro um conhecido a caminho do mesmo destino que eu. Está indo passear? pergunto. Não, estou indo de vez. Carrega pouca bagagem, no entanto; e, quando observo esse detalhe de sua viagem, ele, feito mago, me responde: o que se deixa para trás fornece mais respostas sobre a partida do que o que se leva nas malas. Um escritor em potencial – não repliquei.

Além de tudo, sorri para mim, quem sabe materializando um bom auspício. Os inícios carecem de boas previsões – outra frase de efeito, desta vez, minha. E você, está indo a passeio? ele devolve a pergunta. Por enquanto sim, respondo. Planeja se mudar pra lá também? Hesito, mas afirmo com a cabeça. E sabe cozinhar? Porque é isso que importa.

Adormeço.

Acordo com alguém próximo informando ao telefone que estamos na Marginal Tietê, próximo à rodoviária. Recoloco os óculos, abro a cortina e observo o espaço lá fora. Ônibus se locomove lento. A senhora a minha frente também observa, mas comenta com a outra ao lado o quanto o trânsito é verdadeiramente caótico, não é só matéria do Brasil Urgente. Passa um ônibus intramunicipal ao nosso lado, abarrotado de pessoas. A senhora não deixa de tecer comentário semelhante, precedido de um olha lá, olha lá, como se, nas savanas africanas, visse um guepardo, ou, se num deserto, visse uma miragem. Gente espremida dentro de ônibus parece ser atração turística em São Paulo.

Atrás de mim, dois homens, um brasileiro e outro colombiano, conversam sobre comércio de pedra sabão. O colombiano possui uma loja que comercializa a pedra. Os dois tratam do assunto como empresários que são, analisam os aspectos financeiros, a receptividade do produto no mercado, o contexto de crise e, no fim, trocam cartões. O brasileiro promete visitar o escritório do colombiano no dia seguinte. Ao que tudo indica, inicia-se atrás de mim uma nova sociedade. Entramos num túnel. A semiescuridão me leva até a comunidade extratora de pedra sabão no interior de Mariana, que conheci há alguns anos. Os moradores não extraíam mais o minério como antes, não havia estrutura e estavam agora muito distantes das minas. Sobreviviam do comércio de areia. A comunidade havia sido realocada devido à construção de uma hidrelétrica. E tudo se perdeu, me disse um dos atingidos. Inclusive a pedra.

A rodoviária é logo ali, outro passageiro anuncia. Agradeço ao trânsito lento por adiar minha chegada. Compreendo o susto na expressão da senhora a minha frente, que, agora calada, apenas observa a cidade. A janela nos mantém seguros, segredo a ela. Enquanto houver janela, não há selva, apenas promessa. Enquanto ainda houver esta caixa que se locomove, haverá Minas, haverá sossego. Não estamos preparados como julgáramos – mas isto guardo para mim. Não ousemos pronunciar nosso medo de desembarque. A rodoviária é logo ali. A senhora fecha os olhos, reza. Também fecho. Apenas não penso.

Você chegou, o conhecido da rodoviária me informa, abro os olhos. O ônibus está parado, a senhora, mais corajosa, desceu primeiro. Só estamos eu e o homem de pouca bagagem, que não adivinha meu medo e sorri novamente, um bom auspício quem sabe. Chegamos – divido com ele a responsabilidade.


***


Douglas de Oliveira Tomaz, nascido em 1993, é autor do blog pessoal www.abrigosdevagabundo.blogspot.com.br, recebeu uma menção honrosa no concurso literário do Clube de Escritores de Ipatinga – MG (Clesi), edição 2013, e possui textos seus publicados pelas Revista Jangada. Em 2015, lançou de modo artesanal seu primeiro livro de poemas: Escorre. Atualmente, reside em Pirapora - Minas Gerais.

Ilustração: Vinícius Ribeiro (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

A barranqueira


Do rio que não é mais tão bonito, entretanto, ficam as falas do Paturi. Não sei onde ele arranjou esse apelido. Alguns dizem que foi em rodas de truco, que nelas perdeu tudo; e não pelo fato de viver mergulhado no Velho Chico, como a maioria imagina. “É dia e noite, é noite e dia.” Vaticinam. Às vezes o encontro à beira de um barranco. Gosto de pescar com varinha de bambu japonês. “Então, professor, pegou os mandis?” Tem hora que começa a desabafar, enche-se de histórias de uma Pirapora de tempos áureos. Corta a manhã, a tarde, até a Hora do Anjo, quando me impaciento com os maruins e me preparo para a volta para casa. “Aí, onde c. pesca, só tem piaba, mas já peguei surubim maior que homem mais grande e forte do que eu aí.”

Percebo alguns erros gramaticais na fala de Paturi. Surpreendo-me a gostar de ouvi-los. “É mesmo?” Eu me dirijo a ele com no máximo duas palavras. “Se não tivesse sido cabeça fraca, hoje, seria rico.” Baixa a cabeça e fecha os olhos castanhos avermelhados, arregalados, lacrimejantes. Não passa então de um garoto envergonhado, arrependido de uma arte: “Gastei tudo com baralho e mulher da zona. Uma vez peguei chato e gonorreia. Quase morro. Não procurei o médico e tentava matar os chato com Neocid e curar a gonorreia tomando garrafadas de pinga com raiz e Tetrex.”

Aí fala das casas noturnas, dos bares e quiosques, da paisagem de cidade antiga da época em que o trem não desistia de seu vir e ir e ir e vir. E ele vendo-o passar, cheio de gentes de vários cantos. Algumas afortunadas, provavelmente em vagões à parte, com certo luxo, outras azarentas, febrilmente amareladas, para emendar, num sentido cruelmente literal, personagens de Maleita, do Lúcio Cardoso. Gentes vivas. Gentes sobreviventes. Gentes que eram tiradas do trem antes de chegarem ao seu destino porque a vigilância sanitária previa sua morte, temia o contágio dos demais passageiros. Gentes desenganadas por engano aqui ficaram, deram ao Norte de Minas uma nova identidade perceptível no sotaque com mescla de Minas e Nordeste. Pinheiros em luta contra os desníveis dos barrancos. Nem tudo é dourado como o enorme e belo peixe não mais lugar-comum do Velho Chico.

“Hoje, tem bem mais pouca água.” Paturi se cala. O sol parece querer possuir de corpo e alma o chão, penetrá-lo, como fazem os pingos de chuva, a chuva que a gente espera quase a ponto de desespero. Minha alma se esvazia como o rio em que o ribeirinho deposita seus sonhos, o espaço se acinzenta. “Amanhã é dia de feira, Paturi, seu mergulhão em pinga. Fim de semana eu volto aqui para molhar as minhocas e prosearemos mais.”

A falta de água faz a gente atuar nos lares como em tempo de criança, quem sabe ao tempo que Paturi se refere com nostalgia. Encher vasilhames de água, tomar banho de balde. Eu reclamo do fornecedor de água, a mulher reclama do fornecedor de água, minha filha reclama do fornecedor de água. A cidade e todo o planeta devem reclamar do fornecedor de água. É quando banheiro para nada serve, toalete para nada serve. Espio a pia e o vaso. Penso que em meu tempo de criança palavras como banheiro e/ou toalete eram raras ao meu vocabulário. Época de privadas, construções de lajes com que são feitos os muros, no chão não havia vaso, mas um buraco, uma fossa para despejar os dejetos. Era muito incômodo não ter um vaso, ficar de cócoras para defecar.

Há mandis demais e prefiro não quebrar os seus esporões. Um deles, que vou destripar, me estrepa. Dói. Arde o ponto do dedo de onde um fio de sangue começa a brotar. O dedo incha. Arranco o olho do peixe e esfrego-o sobre o inchaço. Simpatia de pescador. O mandi produz um ruído baixo e estranho, se submetido a determinado estresse, no entanto, não consigo perceber dor na sua expressão, mesmo enquanto se debate e sangra. Pouca terminação nervosa: explica a Ciência. O olhar estúpido de em vida é o mesmo pós-morte.

Termino de tratar os peixes. Os moradores de Pirapora chamam os pequenos talhos que faço dos lados dos mandis, para temperá-los melhor, de ticar. “Retado! Peixe! Peixe! Peixe! Peixe! Nesta casa só se come peixe, oxe!” Não sei o porquê da aversão ao cheiro de peixe de minha mulher. “Papai! Há anus na horta! Parecem estar bicando os pés de couve!” Mariana grita, quando entro no banheiro e me molho, lentamente, com um copo de plástico, da água de um balde preto. “Pega manga aí no chão do quintal e joga neles só para espantar, filha!” Já é quase noite e faz um calor absurdo.


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Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).


Ilustrações: Vinícius Ribeiro.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Alguma crônica deve ser de amor


Escorregou pelo chão quente o seu corpo suado. Já estava só de cueca – sol o obrigara. Ventilador não supera meu fogo, repetia a si mesmo, enquanto escorria. Em sua cabeça, via-se como uma massa gelatinosa, grudenta. Era o calor, repetia. Tudo culpa do calor. Se não houvesse essa quentura, tudo seria melhor, eu estaria correndo por campos verdejantes como na clássica cena de A Noviça Rebelde. Se não houvesse mormaço, quarto não teria se tornado este abrigo subterrâneo contra bombardeios. Abrigo inútil. Vento ainda entra pelas frestas e me arranca o couro. Derreto.

Assim, derretido, lembrou-se da mensagem que recebera pela manhã. Um amigo distante, daquela outra vida, dizendo: Olá, tudo bem? Sinto sua falta. O que tem feito? Não se esqueça de que existo. E como esquecer, seu filho da puta? pensou, mas não respondeu a mensagem prontamente. Levantou-se da cadeira, gastou a manhã com outras hesitações e até conseguiu ignorar o atordoamento. Mas nada escapa ao meio-dia. Nada consegue fugir do sol a pino. E, então, como esquecer este ostracismo? Esse silêncio todo que separou nossos corpos intocados. Se não fosse a porra do seu silêncio, talvez eu tivesse insistido na outra vida, fumando maconha e pensando que o mundo pode ser melhor. Se não fosse seu namoro de adolescência – seis anos! Crescemos, amadurecemos juntos. Sei, sei, sei.

No chão morno, lembranças repentinas misturadas a água e sais minerais: o dia em que foi acordado pelos carinhos dele no sofá de um amigo, festa ainda acontecendo ao redor, acordou e ele alisava seu cabelo, falava algo sobre ter perdido a virgindade com a namorada, mas, mesmo depois de tudo, estar confuso se ainda poderiam continuar. Outra lembrança maldita: os dois caminhando no meio de um aglomerado de pessoas, de mãos dadas para não se perderem um do outro. E mais: o dia em que ele o levou em casa de moto e deixou sua mão recostada na coxa do amigo na garupa. Eu, o amigo da garupa, sem saber o que fazer com aquela mão, tentando ao máximo me afastar dela porque não queria dar bandeira, não queria passar a impressão de estar dando em cima de um amigo hétero. A última recordação não veio porque até hoje não sabe como se despediram. Apenas chegou o dia em que não fumava mais, nem havia utopia, só o calor que de tempos em tempos trocava sua pele.

Tentou se colocar no lugar do outro. E se houvesse desejo verdadeiro engolido a seco? O que fazer com aqueles seis anos de namoro? O que fazer com o amigo hesitante? Abraçar-lhe mais forte? Dizer com o abraço que é, é verdade? Repeli-lo e dizer com a distância presente que sim, continua sendo? Silenciar-se? Ir embora da cidade? Pedir a namorada em casamento? Casar, ter filhos, sonhar com o amigo de outro tempo, ter repetidas poluções noturnas, mandar-lhe mensagem em algum momento? O que fazer com o desejo? E a falta de desejo, em que resulta? Foda-se a alteridade.

O único fato palpável é a quentura de tudo. E o passado. E as marcas do tempo. Ah, que poético! Marcas do tempo. Parece nome de novela ruim. Essa história toda soa como uma Malhação do lado b. Se crises existenciais gays passassem na tevê – filosofou por algum instante. Mas não passam. Tudo um dia vira silêncio. Tudo agrupado no mesmo floco de sujeira intitulado: Silêncio Constrangedor.

Levantou-se do chão, mas tudo ao redor já era água salgada. Nadou até o computador. Respondeu ao amigo de outras vidas que sim, tudo ia bem, muitíssimo bem, citando Caio, e no final anexou a cena de A Noviça Rebelde, anexou os campos verdejantes, não citou que na vida de agora fazia muito calor. E a pele ainda não fora completamente trocada.


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Douglas de Oliveira Tomaz, nascido em 1993, é autor do blog pessoal www.abrigosdevagabundo.blogspot.com.br, recebeu uma menção honrosa no concurso literário do Clube de Escritores de Ipatinga – MG (Clesi), edição 2013, e possui textos seus publicados pelas Revista Jangada. Em 2015, lançou de modo artesanal seu primeiro livro de poemas: Escorre. Atualmente, reside em Pirapora - Minas Gerais.


Ilustração: Vinícius Ribeiro.