quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Segredo sem valor



Passarinho na árvore parece pensar, pois tudo é silêncio então. Alguém podia até dizer algo agora. Então. Agora. Parecemos nos repetir. Quantas cartas você me escreveu? Não lembro. Também não lembro qual de nós dois escreveu a última. Sem honra ao mérito. Sem demérito. Que as melhores impressões, atitudes e momentos fiquem gravados no cofre inviolável da alma. Por falar nisso, aquela carta sua com o cheiro de seu perfume do Boticário, recebida bem nos instantes em que eu ouvia Glory of Love, do Peter Cetera, um som comovente para mim, foi algo muito bom.

Você viu meu nome numa página repleta de nomes de pessoas com desejo de trocar correspondências e escreveu para mim. Eu trocava correspondência com outras pessoas. Sabe, acho que foi assim que tomei gosto por escrever. Eu trocava correspondência com outras pessoas, mas com você havia um clima diferente. Eu percebia calor nas suas cartas, nas suas palavras. Quantas vezes tento encontrar seu nome em um possível endereço eletrônico nas redes sociais! Anseio saber se consegui chegar, no mínimo, ao status de lembrança para você, sumida.

Dizem que numa amizade sincera não devem existir segredos. Entretanto, gostaria de abrir mão do direito de um que guardei escondido de você. Talvez já o tivesse confessado se tivesse logrado êxito em contatá-la. Engraçado. Pensei no trecho do poema Navio Negreiro, do Castro Alves: “Lucimara, onde está que não responde? Em que mundo você se esconde?”

Sabe que sou meio pateta e tenho uma facilidade danada para cair no poço da comicidade. Aquela vez em que nos encontramos no Terminal Rodoviário de Guarulhos e bastou que houvesse um tímido aglomerar de transeuntes para eu me perder de você não sai da minha cabeça oca. Aquela bagagem que eu deixara perto de você quando saí para comprar um litro de água mineral – época em que me preocupava com hidratação.

Sabe, há um longo tempo, aprendi a beber. Há um longo tempo, parei de fumar. Pois é, naquele dia, você via de longe meu estado de aflição, ria quase histericamente, eu quase chorava. Gostei de conhecer sua família, seus pais, irmãos... Não me senti confortável foi com os comentários feitos acerca de meu mineirês. Nem de ficar sabendo que vocês se divertiam com os adesivos de bandas de rock e letras de músicas irreverentes que eu colava nos envelopes das cartas que lhe enviava. No mais, fui muito bem tratado por vocês.

Mudando de assunto, havia em você uma forma coesa e coerente de separar as coisas que impossibilitou que nos enamorássemos. Vejo isso positivamente hoje. Mesmo que alguns amigos meus me dissessem: “Você está dando mole. A menina está afim de você.” Bem. Vou imaginar que não saiu de sua memória o verso Longe é um lugar que não existe, do Richard Bach, também título do livro com o qual lhe presenteei àquela véspera de seu aniversário.

Você se encontrava doente. Eu queria lhe dar uma boneca de pano de presente, mas, para variar, estava quase sem dinheiro, e a que eu tinha visto, com muita cobiça, numa loja de artesanato, era linda, mas muito cara. Em tal ocasião, passei perto de uma livraria e entrei. Perguntei ao vendedor se ali havia algum livro bom para presente que não custasse muito caro. Ele me mostrou alguns em promoção e entre eles o Longe é um lugar que não existe. Me falou do livro, mas eu, avoado demais, nem prestei atenção. Comprei. Pedi para embrulhar com papel de presente, enviei-o por Sedex para você.

Você fez questão de telefonar para o nº que eu lhe havia passado, por não ter telefone em casa, do escritório da fábrica, onde eu trabalhava, para me agradecer. “Valeu, pelo livro. Amei. Que lindo. Era o que eu precisava para melhorar o astral de enferma.” E continuou a tecer comentários muito elogiosos sobre o livro e sua temática em si. Eu monossilabava, fingia estar ciente do texto presente no objeto em foco. “Sim... É... Hum, hum...”

Aqui, eis o segredo: com você aprendi que devemos ler um livro antes se pretendemos dá-lo de presente a alguém.


***


Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).


Ilustrações: Vinícius Ribeiro (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

"Fotografo porque busco a mudança do mundo", Danilo Nascimento

Foto: Davi

Danilo Nascimento aprendeu a fotografar vendo o pôr do sol, o Rio São Francisco. E, hoje, seu amadurecimento profissional também flui naturalmente. Captar uma imagem é trocar energia com o objeto captado. Fotografia se transforma em história.

Radicado em Belo Horizonte – mas ainda fortemente ligado a sua raiz, Pirapora –, nesta entrevista, Danilo submerge aos níveis profundos de seu ofício: o aprendizado trocado entre espaço, indivíduo e fotografia; a dimensão política; suas origens; a perspectiva, materializada em imagem, de quem mora longe do lugar que ama; a compreensão de que o fotógrafo é testemunha do seu lugar e do seu tempo. Deste mergulho, ele emerge para apontar a necessidade de mudança. A fotografia pode transformar o mundo.


Danilo, a fotografia captura instantes. O que apenas um instante revela sobre o lugar, sobre a pessoa fotografada?

A fotografia tida como um instante congelado no tempo sempre revela um conjunto de sentimentos e energia trocados entre o objeto (lugar ou a pessoa) e eu. Por isso cada imagem revela a minha energia pessoal em interação com a energia do objeto fotografado. Se não estivermos em sintonia, provavelmente não teremos boas fotos.


Você tanto se dedica à captura de imagens que acontecem por si mesmas, as imagens espontâneas, quanto à captura de imagens manipuladas pelo seu olhar. O que te dá mais prazer em fotografar? Quais as diferenças?

As imagens espontâneas são as mais interessantes e as que mais gosto de fazer. Tenho um projeto chamado Citadino que tem essa proposta de observar as relações pessoais no meio urbano sem pré-conceitos e julgamentos, como alguém que está invisível e inserido nesse meio sem ser notado, não influenciando em nada. Esse trabalho é um dos que mais tenho me dedicado no momento. A diferença entre a fotografia espontânea e aquela em que podemos manipular o objeto fotografado (retrato, em caso de pessoas) está na beleza do inesperado. Quando as pessoas sabem que são fotografadas, elas se preparam para o retrato, então já não são naturais. Entretanto, quando elas não sabem da foto, a ação natural prevalece, revelando a magia da ação espontânea.



Da série Citadino


O que te despertou para a fotografia?

A beleza da natureza despertou a fotografia em mim. A vontade de eternizar cada imagem bela que se forma nos fenômenos naturais. Sempre gostei de fotografar paisagens, em especial, pores do sol. A fotografia surgiu como uma fuga do estresse.


E hoje, por que ainda fotografa?

A motivação já é outra, não é somente um refúgio. Tenho um compromisso em tornar melhor o universo em que vivo. Busco impactar as pessoas com minhas fotos, ora pela simples beleza de uma imagem, ora pelo incômodo de temas polêmicos que tiram a mente dos espectadores do conforto de uma falsa sensação de que apenas pela fé podemos tornar o mundo melhor e que tudo pode ser revertido quando quisermos. Fotografo ainda hoje porque eu busco a mudança do mundo, e se eu conseguir acender uma pequena centelha no pensamento crítico das pessoas com minhas fotos, já estarei satisfeito. Outro motivo que me mantém nessa jornada é que tenho recebido mensagens de pessoas que passaram a admirar mais a arte depois que passei a publicar meus trabalhos. Isso me mantém querendo aprimorar meus conhecimentos, minha visão, minhas técnicas e, consequentemente, todas as histórias que conto nas minhas fotos. 


Você disse que fotografa para transformar o mundo. O quão transformadora pode ser uma imagem?

A fotografia, assim como todos os tipos de arte, tem o poder de transmitir emoção às pessoas, sendo prazer ou incômodo. A fotografia, por si só, traz um conceito intrínseco, à primeira vista é possível ver a realidade, mas o conceito só aparece quando a imagem é esmiuçada pelo alinhamento olho, cérebro, coração. Gosto sempre de relacionar minhas fotos com algum contexto, conceito ou frase que exprima meus sentimentos no momento em que fiz a imagem. As pessoas são sensíveis, se conectam facilmente com a arte e são tocadas, os pensamentos e atitudes podem ser modificados.


Seu pai já foi pescador e até hoje mantém uma forte ligação com o Rio São Francisco. Você produz ensaios sobre a cultura barranqueira, como o excepcional Poesia e Sugestão. O que interliga esses dois fatos?

Meu pai me ensinou a respeitar a natureza e as pessoas, ele é meu mestre. Eu, como um bom discípulo, sigo os ensinamentos dele, construindo meu próprio caminho e respeitando os valores ensinados. Por isso, tenho essa forte ligação com o Rio São Francisco, pois nasci e vivi como barranqueiro. Hoje sofro com os maus tratos que a natureza vem sofrendo, em especial, o nosso Velho Chico, pois me sinto como se fosse parte dele.

O ensaio Poesia e Sugestão foi muito especial, pois envolveu um contexto literário totalmente engajado à história da modelo e pude contar com a participação da Prof. Bethânia Passos na elaboração do conceito. Além disso, conseguimos encaixar dois elementos que são marcantes para mim, pôr do sol e o Rio São Francisco. O fato é que estou mais inspirado quando estou no ambiente barranqueiro.





Do ensaio Poesia e Sugestão


Atualmente, você vive em Belo Horizonte. Como é Pirapora vista de longe? O que você aprende com a distância?

Pirapora vista de longe é saudade, é vontade de retornar e de poder trabalhar para cuidar dessa terra que sofre com o descuido de políticos. Quando não estamos inseridos diretamente em uma situação e apenas a observamos de longe, temos uma percepção diferente, não melhor, nem pior, apenas diferente. Estando de fora, eu valorizo mais as belezas naturais e enxergo algumas oportunidades de melhoria na cidade que fariam muita diferença na vida dos barranqueiros.


Quais as melhorias mais urgentes?

Vou citar três pontos críticos que enxergo com clareza e que necessitam de uma atenção especial. Primeiramente, a Ponte Marechal Hermes, que é maravilhosa, um patrimônio tombado, e se encontra em uma situação deplorável. Há alguns anos, se não me engano 24 de dezembro de 2012, uma criança caiu entre as tábuas da ponte e morreu. Poderia acontecer com qualquer um de nós. Além disso, os apoios da ponte, assim como toda sua estrutura estão comprometidos pela oxidação, sem falar na iluminação precária.

Outro ponto é o próprio Rio São Francisco. Qualquer um que viveu a sua beira pode perceber a mudança para pior. Diversas ilhas estão se formando e a margem está avançando sobre o leito do rio. O assoreamento está aumentando, há muito lixo e o canal que passa no Barreiro, também passa no Saae, mas deságua no Rio sem nenhum tipo de tratamento. O Rio é responsabilidade de todos e devemos cobrar que seja cuidado.

Por fim, o desenvolvimento urbano. Percebo que Pirapora teve uma pequena evolução desde que saí de lá, mas o crescimento poderia ter sido bem maior. Tenho muita vontade de voltar, mas não posso contar com isso, sabendo que não tem um mercado de trabalho que possa me absorver. Pirapora tem muitos artistas e existem duas opções para eles: ou se jogam no mundo ou vão morrer sem nem mesmo serem vistos pelos seus próprios conterrâneos.


Qual é a sua melhor fotografia?

É difícil falar em melhor fotografia, mas uma das que mais gosto é esta:


Eu não tinha pretensão de ser fotógrafo profissional quando a fiz, assim como outras fotos de que gosto muito. Essa fotografia me dá a sensação de ser o próprio Rio.



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Entrevista: Douglas de Oliveira Tomaz.