sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Arribação: "Agora que todas as coisas importam" - Cecília Donateli



AGORA QUE TODAS AS COISAS IMPORTAM

o frio
os mitos cosmogônicos
as raízes factuais da plumagem de um Arcanjo
as raízes factuais da plumagem de um pato
o frio
o efeito Doppler de um corpo
pluvioso
           vindo
                  de
                     encontro
a liberdade por um preço módico:
eu te amo
volta logo
três portos e dezessete jazidas de minérios estratégicos
(FERNANDES, Millôr; 1965)
o frio
a hipotrofia
as tíbias que estouramos correndo da polícia
os pára-quedas que não abriram
agora que todas as coisas importam
deixá-las de lado
seria maldade

***

Cecília Donateli (1989) é capixaba, mineira e carioca em um corpo só. Graduou-se em Direito. Para compensar esse auto-boicote, escreve poemas.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Arribação: "Filhote de cobra" - Rafael Ornelas


É comum, no interior de Minas Gerais, o ato de ingerir filhotes de cobra quando se está apaixonado. O jovem casal deveria engolir uma cobra, do tamanho de uma minhoca, no ápice de sua paixão. O perigo de o animal se revoltar já na boca do apaixonado era o que instigava o menino e a menina a cometer a loucura; nada era perigoso demais aos amantes. Acontece que, para os habitantes dessa cidade, este ato era bastante simbólico: a cobra representava o incerto, a vida e o traiçoeiro.

Com uma linha o garoto amarrava a boca serrilhada do animal e entregava à garota, que sempre deveria ingerir primeiro. O ritual obrigava as mulheres engolir o réptil primeiro, pois que das complicações que poderiam vir de uma mordida, seu corpo era milenarmente preparado a lidar com a dor. Ansiosa por algo que nunca tinha feito antes, a jovem segurou a cobra pela pontinha do rabo e, fechando os olhinhos, jogou-a esôfago adentro. O rapaz foi o próximo; relutante, já não tinha certeza se queria fazer aquilo – rapazes nunca têm.

Uma vez no estômago, duas coisas podem acontecer à cobra: morrer, prematura, pelo suco gástrico de seu portador, ou resistir a este líquido, encouraçando sua pele fria e fazendo-se forte e resistente. O filhote que o garoto engolira morreu cedo e logo a brincadeira de beijos e carinhos se tornou banal e rotineira para ele. Já o da garota, este resistiu às provas biológicas de seu corpo, quase numa obstinada necessidade de manter-se vivo.

O maior sofrimento da menina não foi o de ser deixada, mas o da necessidade de lidar com um ser que crescia a cada dia. Quando incomodada, a cobra picava a carne da garota e emitia um silvo alto que se fazia ouvir por quem se aproximava. O réptil, é certo, um dia morreria, e as feridas deixadas por ela se cicatrizariam pela habilidade lenta e gradual do corpo humano de se curar; já a menina... ninguém morre com uma cobra na barriga.


***


Rafael Ornelas tem vinte e dois anos e é estudante de Letras. Mora em Belo Horizonte, mas cresceu em Guanhães, interior de Minas Gerais. 
Ilustração: Vinícius Ribeiro (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Um dos últimos dodôs



Meus pés pisavam folhas secas de eucalipto. Farfalhos e estalidos de gravetos se faziam ouvir. Vários carrapatos, alguns pequenos e outros relativamente grandes subiam pelas minhas pernas, invadiam partes íntimas, picavam, principalmente a região escrutina que coçava, coçava muito. Meu irmão me acompanhava nessa empreitada. Catávamos lenha para acender a fogueira na fornalha, cozinhar o feijão, economizar o gás e diminuir a tristeza noturna do frio julho.

Era proibido catar lenha naqueles pastos. Às vezes o ronda nos surpreendia, obrigava-nos a correr, de maneira desabalada, os feixes nos ombros, passar debaixo das cercas de arame farpado, às vezes nos machucávamos nas pontas enferrujadas do arame. Carecíamos de álcool para passar nas feridas, livrar-nos no mínimo da cisma do tétano. Quase nunca havia.

Não sei por que, meu pai me apelidou de Dodô. Talvez por esta cara de sonso e aludindo ao personagem de Alice no País das Maravilhas, cara que fazia alguns me chamarem de Sonson. Meu irmão, o Henrique, era apelidado de Ique. Lembra soluço. Tais apelidos, creio, pegaram mais porque meu pai, todos os meses, na véspera de pagamento, costumava nos presentear com carrinhos de brinquedo, de plástico. Para mim uma Bascola, para meu irmão um Volks.

O velho tinha uma sanfona antiga, vermelha, pequena, oito baixos, da Hering. Tinha a mania de cantar de uma maneira bem peculiar, enquanto tocava:

- Vôca do Ique, Bascola do Dodô. Vôca do Ique, Bascola do Dodô.

Às vezes mudava a toada, o que para mim era um alívio, já que, a molecada da Rua J. B. D. costumava ouvir seu Afonso tocar, ao passar na rua, decorar o som para que nós pudéssemos lhes servir de chacota. Tenho o estopim bem curto, por isso eu sofria mais.

Outras toadas clássicas de meu pai eram:

- Para, Pedro! Pedro, para. Ou:

- Dona Mariquinha foi tomar banho na gamela, a água estava quente e sapecou a bunda dela.

Crescemos com o sonho de comprar um carro. Não consegui o feito, que acabou sendo realizado por meu irmão.

Não sabíamos dirigir. No dia da compra, bebemos muito para comemorar, não um Volks, sim um Opala amarelo. Meu irmão emprestou o carro a um primo que sabia dirigir, para teste. O último saiu e ficamos sentados a uma mesa, próximos ao balcão do bar, onde bebíamos.

Esquecidos de que havíamos emprestado o carro, saímos do bar, bebíssimos. Não vimos o veículo, ficamos desesperados, a sensação de termos sido roubados. Procuramos pela região do bar, nada achamos, chamamos a polícia, fizemos B. O. Por fim, fomos para casa.

Apesar da tristeza, foi fácil dormir, mergulhados naquele mundo de águas.

Pela manhã, com a maior cara de ressaca, meu irmão foi contar à sua esposa que o carro havia sido roubado, a ponto de dar vazão a um pranto. Ela lhe disse:

- Então, eu estou variando. Que Opala amarelo é aquele que seu primo trouxe e guardou na garagem?

Ele:

- Eu já sabia. Estava só brincando.

Apareci na casa de Henrique, mais tarde, surpreendi-me, ao vê-lo, como uma criança; simulava dirigir, buzinava, fazia ruídos de automóvel com a boca, à maneira que brincávamos em pequenos.

- Entre aqui, cara.

Entrei no Opala. Ele pegou uma fita e colocou para tocar uma música da banda alemã: Accept.  Metal Heart.

Ficamos ali, umas longas horas.

Agora, imagino como era fácil, no tempo mais comum de o sonho fluir, andar de carro, mesmo sem saber dirigir, viajar pelo mundo inteiro, sem sair do lugar.


***


Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).


Ilustrações: Vinícius Ribeiro (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)