quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Arrumar o quarto



Guardo esta noite para a reconciliação. Quantos voltaram a escrever após arrumarem o quarto. Uma noite inteira para olhar um a um os livros caídos. Se eu pudesse, fotografaria esta cascata. Quanto tempo? Me reconciliar com a poeira dos discos, das revistas, desempilhá-los, observá-los um a um em seu abandono, um quarto. Durante, arroz no fogo, meus dedos abandonam o corte da página, corte preciso, resto de cenoura. Geladeira abandonada. Retorno.

Coletar tomates de uma horta seca. Selecionar a audição de um disco, dois mil e oito. Procuro a data, não encontro. Pintura romântica na estampa da camisa que retiro da mala. Repovoar o guarda-roupa. Com o arroz prestes a queimar, deslizo meus dedos pelos cabides soltos, pelo desejo. A página em corte ainda vivo. Observo os dedos, tão longos para esta idade; de quem herdei os dedos, encaro a noite. Troco as cortinas. Agora a luz virá, quando for de vir.

Se eu pudesse pousar um porta-retrato sobre a escrivaninha. Se houvesse moldura possível para hoje, qual canto. O disco se interrompe sozinho, demoro a ouvir. Demoro a ouvir o silêncio do disco, quanto tempo calado, meu deus, quanto tempo. Cenoura em toco. Plantas semimortas. Cuidar da horta, trocar as cortinas, ainda não é hora de ir lá. Quase tropeço. De tanta demora, estou prestes a virar imagem.

Arrumar o quarto e só agora, dois mil e dois, voltar à casa que se foi. Abro uma revista, leio os resultados. Uma frase, uma história contada a partir de uma frase. Milena se suicida porque já não aguenta os arquejos da mãe. Escreve na borda de uma partitura: não aguento os arquejos de minha mãe. Procuro pelo autor da história dentro do quarto. Mas ele está fora, algo me diz que ele está lá. Ainda não é hora. Retiro da mala o pior dos agasalhos.

Se este texto for tentativa de me comunicar com Milena, não digo. Despetalo a rosa azul e procuro na pilha os livros do mar, que avançam em direção à cama. Londres dentro do quarto. Para que eu possa um dia reencontrar os rastros e perseguir o mar através dos livros como quem procura nas mesmas pétalas azuis a rosa de antes. Dois mil e sete. Arrumar o quarto e ir deixando rastros de uma passagem vaga que no entanto acumula louças, e a poeira quem tira?

Deitar sobre a cama, afastar os livros para evitar o corpo a corpo noturno. Após comer uma comida triste. Após o disco reiniciado quantas vezes. Deitar sobre a cama, afastar as canetas, a jangada em miniatura que sem querer, os cabides soltos, afastar o desejo para que um corpo possa caber. Arrumar o quarto, rastros pela casa, casa, uma presença vaga. Retorno. Através um durante.


***


Douglas de Oliveira Tomaz, 24 anos, é autor do blog pessoal www.abrigosdevagabundo.blogspot.com.br, foi premiado pelo concurso literário do Clube de Escritores de Ipatinga – MG (Clesi) e possui textos seus publicados pelas revistas Jangada e Conhecimento Prático - Literatura. Publica regularmente crônicas n’O Salto e mora em Belo Horizonte, onde escreve seu primeiro livro de contos.

Ilustração: Vinícius Ribeiro. Começou a desenhar desde a mais tenra idade e nunca mais parou. Atualmente, estuda Artes Visuais na Universidade Estadual de Montes Claros. Colabora periodicamente como ilustrador para O Salto, além de ser autor do blog pessoal Pensamento Ilustrado (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)


domingo, 8 de outubro de 2017

Arribação: "Bubuia", Jéssica Martins Costa



bubuia


hoje eu já garanti o café.
desfiz o bordado que fiz ontem,
olhei por alguns minutos
sem surpresa
as plantas que morreram de causa desconhecida
de um dia para o outro.

algumas coisas morrem
e se vão, sem ritual.
algumas coisas são perenes
meu café é perene
meu olho é perene.

o corte sem cuidado,
sem satisfação
do alerta dos sentidos todos.
o sexto, inclusive.

talvez seja eu o próprio método
da tempestade:
salvar-se, sair ilesa, só um sonho cínico.
a cada manhã acordo numa praia nova
(braços, cômodos, uma emoção
até então desconhecida)

carregada de novo
pela onda da noite

só aceito.
lembrar meu nome me basta.



***



Jéssica Martins Costa nasceu em Belo Horizonte, num verão dos trópicos de 1992. Quase ao meio-dia, provavelmente debaixo de um céu de brigadeiro. Anda meio distraída meio muito atenta pelo mundo e, como muitos, ainda não entendeu direito o que está fazendo aqui. Sabe que traduz e escreve poesia. Que formou-se em Letras em algum ponto dos anos 2010 e depois não quis mais saber de escola. Que se reúne (quase) todos os domingos com amigos em um bar, para ler e conversar sobre poesia, e que eles dão a esse encontro o nome de Antissarau. Que nasceu longe do mar por uma adversidade do destino, mas pretende consertar isso em breve. Que é meio bicho do mato. E que sem dúvidas não é muito boa em falar de si mesma. Seu primeiro livro, Bubuia, sairá em novembro pela Editora Patuá.

domingo, 1 de outubro de 2017

Xará



Ser um garoto com ar de gasto desde os primórdios da infância tem lá ao menos uma vantagem: passar despercebido, por exemplo. As pessoas o têm como uma face vista e revista vezes sem conta, mesmo à primeira vista.

Jonas Júnior Silva. O nome da pessoa.

Uma criaturinha que moldava sua personalidade (se é que tinha alguma) ao ritmo da monotonia. Jonas Júnior Silva tivera tataravô, bisavô, avô, pai e tios com o nome de Jonas. Jonas tinha com todos seus parentes uma semelhança significativa. Ele era uma pessoa transparente demais. Tinha cicatrizado à flor da alma (se é que tinha alguma) o receio de guardar segredos. E não é segredo de ninguém que uma pessoa para ser considerada interessante precisa acumular alguns segredos.

Jonas Júnior Silva era chamado pelos amigos de infância de Xará. O epíteto fossilizou, tomou forma de perenidade. Nada de mal. Xará é aquele que tem o mesmo nome. Nenhuma nuance a mais a acrescentar ao livro aberto dessa vida em voga. Uma vida besta, diria Drumonnd em um de seus célebres poemas.

Em referência sonora à palavra célebre, Xará tinha três cães. Cruzamento de pitbull com vira-lata. Os três cães tinham o mesmo nome: Cérebro, que, por sua vez, aludia ao nome mítico de Cérbero, o cão de três cabeças, guardião do portal do inferno.

A esquisitice do menino não parava por aí. Sua coleção de minhocas era outro caso. Ele não deixava as minhocas passarem de sete. Quando tal número era ultrapassado com o surgimento de novos comedores de lama, ele separava os maiores, os aparentemente mais saudáveis, excluía, assim, os mais fracos, que sacrificava aos peixes de um aquário, onde criava pirambebas, pequenos peixes da espécie das piranhas, em ato bastante cerimonial.

– Um projeto de Hidra –, definia, assim, Jonas, a sua coleção de minhocas. Complementava que os bichos também raciocinam, mas que o uso acentuado do lado direito, o criativo, e o do lado esquerdo, o racional, é predicado dos humanos. Ao ouvi-lo assim falar, seus pais achavam que o filho tinha miolos de minhoca.

Jonas, ou Xará, tinha dificuldade de recordar nomes e muita facilidade de esquecê-los. Ele ainda sofria, solitário, uma crise de identidade que insistentemente negava.

Porém, em seu caderno de apontamentos, era comum (o que não era comum em um menino que negava ser incomum o tempo todo?) serem encontradas frases de teor cáustico, recicladas de leituras feitas ao longo de seu tempo, em um caderno de apontamentos. Exemplos:


1 – A existência é um osso antigo que ainda verte sangue virgem nas mãos de um mendigo imerso em ilusão.

2 – Pé de rosa nasce num jardim mal cuidado, onde, de forma furtiva, feto abortado foi enterrado.

3 – Cheiro de peixe podre. Mosca excitada, a ponto de copular com lâmpada apagada. Lâmpada apagada, acossada. Tímpanos zumbem. Verbo crescer em forma de gerúndio: CRESCENDO!

4 – Quem pariu a humanidade foi uma pedra.


            E por aí ia. Tudo documentado, visto e revisto, desde a capa à contracapa.



***


Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro-MG há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015) e Piolhos (2016), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).


Ilustração: Vinícius Ribeiro. Começou a desenhar desde a mais tenra idade e nunca mais parou. Atualmente, estuda Artes Visuais na Universidade Estadual de Montes Claros. Colabora periodicamente como ilustrador para O Salto, além de ser autor do blog pessoal Pensamento Ilustrado (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)

domingo, 24 de setembro de 2017

Arribação: “Um grande acordo nacional”, Cecília Donateli



Um grande acordo nacional

É da boa educação
limpar os sapatos
no tapete Welcome

Adentro disjuntores,
santinhos, chicotes,
fotos de família,
banda larga,
frigobares e jornais
com as metas do governo

Ninguém pode acusar o brasileiro
de não ser capaz de fixar
vertigens

O dólar caiu,
toda reforma que vem
vem para o bem
de toda a gente de bem
do Brasil

Trabalha e confia

Deus abençoa
quem chega sorrindo
de cambalhota
à própria guilhotina


***



Cecília Donateli (1989) é capixaba, mineira e carioca em um corpo só. Graduou-se em Direito. Para compensar esse auto-boicote, escreve poemas.

domingo, 6 de agosto de 2017

Factory


1.
Meu Deus, e agora?

Factory é um objeto que tem como responsabilidade criar outro objeto.

Eu vou entrar agora na máquina aqui.

Aqui é o ponto fatal.


2.
Você mataria sua mãe por um milhão?

Eu gosto muito da minha mãe, mas eu não vou lá não.

Minha avó vai se casar sábado.

Tia Selma vai lá em casa só pra comer o tomate.

Lá em casa o povo não vive muito não, na verdade vive, mas morre de diabetes.

Vão enterrar ele que horas?

Quando você diz “arruma aí”, eu não sei o que é arrumar, mãe.

Vocês lembram quando a gente não tinha farinha de trigo?

Deus lhe pague, Marilene.

Tchau, vó.

Vai com Deus, mãe.


3.
E todos odeiam Daniela.

Eu já explodi um rato com um rodo.

Meu colega compra um cachorro e bota o nome dele de Latrocínio.

Traumatismo craniano na hora.

E eu não tenho nenhum dom, cara.

Não desespera.

Tem que sofrer pra purificar.


4.
Douglas, favor, comparecer à linha de frente.

Eu assino como eu?

O que me mata é trabalhar sábado.

Descansar agora, como se dona de casa descansasse.

Imagina você ir de limusine pro serviço.

Cê acha que eu vou advogar pra pobre, pra peão?

Mas eles nunca vão juntar uma equipe boa, paga pouco, exige muito e trata garçom que nem cachorro.

Que que tem trabalhar em zona, é um serviço digno.

Eu gostaria de poder ter tudo.


5.
O invisível a gente não consegue ver.

Eu faço arroz porque quero comer.

Se você não descer do ônibus, você vai ficar dentro do ônibus.


6.
Cada doido, cada doido, eu acho que deve ter faculdade de doido.

Quando você acha uma pessoa bonita, você stalkeia ela, fi.

Eu vou é pedir o impeachment dele da minha vida.

Este sol é minha kriptonita.

Aí eu falei, putz grila, a mulher jogou passas no meu creme.

Batata pesa, né?

Vou arranjar uma namorada no final do ano, acho que merece.

Então toma um bicarbonato, toma um banho, faz alguma coisa, uai.

Quem vai fazer a limonada hoje?

Passou quando eu tava pagando a passagem.


7.
É muito chão, né?

Quem tem limite é fronteira.

Ai, que bom que você me entendeu.



***



Douglas de Oliveira Tomaz, 24 anos, é autor do blog pessoal www.abrigosdevagabundo.blogspot.com.br, foi premiado pelo concurso literário do Clube de Escritores de Ipatinga – MG (Clesi) e possui textos seus publicados pelas revistas Jangada e Conhecimento Prático - Literatura. Publica regularmente crônicas n’O Salto e mora em Belo Horizonte, onde escreve seu primeiro livro de contos.



Ilustração: Vinícius Ribeiro. Começou a desenhar desde a mais tenra idade e nunca mais parou. Atualmente, estuda Artes Visuais na Universidade Estadual de Montes Claros. Colabora periodicamente como ilustrador para O Salto, além de ser autor do blog pessoal Pensamento Ilustrado (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)

domingo, 25 de junho de 2017

Arribação

Seguindo o caminho aberto no ano passado, meio de ano é tempo de migração. Tempo de peixe se mover, de artista se mostrar. Envie sua produção artística pra gente!

E releia aqui o que já foi publicado.



(arte de divulgação: Vinícius Ribeiro)

segunda-feira, 12 de junho de 2017

- corte



Antes que eu cortasse o cabelo há mais ou menos um mês atrás, ainda que minha perspectiva de tempo não me dê certeza dos dias, ou de como passam − mantive nos fios, antigos e mais longos, o sabor dos dias em que talvez te amasse. Não é totalmente absurdo dizer que a possibilidade de amor pesa a cabeça, e os cabelos precisam ir pra gente continuar vivendo sem carregar essa ideia no topo do mundo da gente mesmo.

Cortados os fios, cheguei em casa tranquila, mas olhei a janela um dia desses, o que me fez recordar, nos fios antigos, a visão da sua. A minha continua a dar pra varais e barulhos de carros e buzinas. O amor, sempre juvenil, é esse ruído todo, era o que minha mãe dizia enquanto eu chorava por alguma paixão adolescente. Pegava a tesoura, e ia aparando cuidadosa, ponta a ponta, às vezes me punha franjas, às vezes me desfiava, e o peso do mundo desaparecia, porque era outra a pessoa que surgia debaixo das tesouras de minha mãe.

Olhando as janelas: “despe-te dos ruídos”, aparecem os versos que não recordo de quem são e me gritam por dentro, como se lá, no profundo das coisas, existisse sempre alguém que me rodeia e me grita poesia quando me lembro de ti. Os cabelos crescem num outro tom de afeto, mas você vez ou outra me aparece num ruído ou sonho qualquer, e fico imaginando como teria sido se. A cabeça ruidosa se apega menos aos fios, às vezes, e experimenta o oco da luz do fim da tarde, o sino das horas inteiras da igreja do lado, de um dia na cozinha enquanto tateávamos, no escuro, a tentativa do corpo do outro.

Talvez haja amor não por ti, mas pela lembrança barulhenta que vem na fantasiação e me faz colocar Vinicius pra tocar em dia de sábado, como se cortasse os cabelos novamente e desfiasse no som das coisas o passo ruidoso que antecede a gente ante a esse esforço subtil de esquecer.

– porque hoje é sábado. 


***



Brenda K. Souza, 24 anos, mestranda em estudos literários.


Ilustração: Barbarete, ou Bárbara Louzada. Artista, tatuadora e geógrafa, sobretudo uma entusiasta da vida. Atualmente, estuda Artes Plásticas na Universidade Federal do Espírito Santo, mas conserva a certeza de que os cantos do mundo têm muito mais a ensinar e a revelar sobre o universo da arte e do sentir.

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Cantiga em prosa



Instantes de ânsia extrema.

Você o tempo todo no pensamento, a preencher horas de ação e de ócio.

Seu beijo. Seu cheiro. Seu corpo abraçado por mim com a loucura de quem queria ver o tempo parar. O pânico de não conseguir negar que a impossibilidade de eternizar nossos momentos fosse possível.

Era você. Anjo às vezes. Às vezes um demônio num corpo de luxo. A me obrigar a congelar o calor torturante de meus genitais, apalpá-los, apertá-los, como se assim diminuísse a gula de possuir você inteiramente.

Estamos diante do portão de sua casa, 23h:30min. Ou diante do portão de meus pensamentos? Você usa uma camiseta que tem uma foto da Mary Poppins estampada, sem sutiã por baixo. Você veste uma minissaia. Beijo sua boca. Mordisco seus lábios. Esfrego-me em seu corpo. Você chupa minha língua com volúpia. Toco seus seios. Minhas mãos passeiam pela sua bunda. Você me empurra. Pede para eu parar.

Era você. O nome que eu sussurrava enquanto descia de montes isolados para tocar punheta, sentir-me mais vazio depois de gozar.

Tanta laranja madura, tanto limão pelo chão!

Era você que fazia com que eu achasse que ir longe demais fosse perto. Era você que fazia e ainda faz meu coração bater de forma acelerada e dolorosa.

– Melhor acabarmos com isso.

Você acabou comigo.

– Morrer de amor não mata.

– Não? E o louva-a-deus?

– Eu disse morrer de amor. Não disse morrer de amar.

Tanto sangue derramado dentro do meu coração!



***


Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015) e Piolhos (2016), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).


Vinícius Ribeiro, artista. Começou a desenhar desde a mais tenra idade e nunca mais parou. Atualmente, estuda Artes Visuais na Universidade Estadual de Montes Claros. Colabora periodicamente como ilustrador para O Salto, além de ser autor do blog pessoal Pensamento Ilustrado (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)

domingo, 7 de maio de 2017

O colapso da torre é o maior dos arcanos maiores



Nada muda a direção de uma faca a abrir-lhe o peito às 6 horas da manhã. É vendo a mesa, o pão e a xícara que se descobre como se movem as correntes marinhas e os demais movimentos continuados de uma matéria. Uma onça, sálmica, no cume da rocha, tentando fugir do fogo que jamais tivera a chance de causar: lá fora as pessoas tomam o ônibus para ir ao trabalho.

Esse é, assim parece, o regime do corpo. O corpo, que pode ser a mãe de três filhos e também o facínora, o corpo cuja pele é o que há de mais profundo, submetido à retórica do sacolejo. Um umbigo muitas vezes é um poço raso em que, com algum esforço, se pode afogar.

Em 1854, Auguste Salzmann fotografou os muros de Jerusalém do lado de fora. A revista Annales Archéologiques, à época, disse que as fotos demonstravam uma relação sálmica com a cidade sagrada.

Sálmica é a onça que dorme em pé da Zona Norte à Zona Sul.


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Cecília Donateli (1989) é capixaba, mineira e carioca em um corpo só. Graduou-se em Direito. Para compensar esse auto-boicote, escreve poemas.


Vinícius Ribeiro, artista. Começou a desenhar desde a mais tenra idade e nunca mais parou. Atualmente, estuda Artes Visuais na Universidade Estadual de Montes Claros. Colabora periodicamente como ilustrador para O Salto, além de ser autor do blog pessoal Pensamento Ilustrado http://pensamentoilustrado.tumblr.com/

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Ando colecionando frases



Ando colecionando frases. Meu quarto está sujo e tenho dormido num colchão. A cama quebrou à noite, já faz alguns meses. Não sei qual mistério me impede de montar a outra cama, que me espera dentro do quarto ainda em suas partes: cabeceira, parafusos, estrado. É uma cama velha, se pudesse falar, me contaria uma boa história. Me diria uma boa frase.

Jéssica está afetada, escreve sobre a morte. Moramos juntos. Falar sobre a morte é uma das maneiras de se aproximar dela. O assunto mora na casa. Mora na varanda, no vaso de planta, mora no ralo. Para escrever, é preciso morar no que se escreve. Jéssica sabe, tem andado calada. Das frases que já recolhi, poucas são sobre a morte. Dentre as poucas, uma frase dita por Jéssica.

Acabo de chegar da rua e meus pés estão sujos. A última frase que anotei, Quem vai fazer a limonada hoje?, foi dita da cozinha de um pequeno restaurante por uma mulher. Da porta, ela olhava para as mesas vazias, onde se sentavam apenas um homem e duas crianças. Um dos meninos se animou com a pergunta e começou a pular. O homem, pochete na cintura, não se moveu. Passei.

Anotei as últimas frases num recibo de ônibus. Não sei por qual motivo iniciamos coleções. Me atentei para a frase quando passei a ler as crônicas do Victor Heringer. Num entulho, encontrei um colchão de casal. Quantas frases cabem num colchão usado? Passei. Na maioria das vezes, não tomo nota do que penso. Do que falo me esqueço um segundo depois. Os muros dizem boas frases, mas não são essas. Tampouco legendas de foto, ou lapidação.  

O quarto está sujo e escrevo. Não sei porque escrevo, ao invés de arrumar o quarto. A casa estaria mais limpa se eu não escrevesse. Meus pés não estariam sujos. Caminho com as orelhas.


p.s.: um dia me disseram: sua avó está nos seus pés.



***



Douglas de Oliveira Tomaz, 23 anos, é autor do blog pessoal www.abrigosdevagabundo.blogspot.com.br, foi premiado pelo concurso literário do Clube de Escritores de Ipatinga – MG (Clesi) e possui textos seus publicados pelas revistas Jangada e Conhecimento Prático - Literatura. Publica regularmente crônicas n’O Salto (www.osaltobarranqueiro.blogspot.com.br) e mora em Belo Horizonte, onde escreve seu primeiro livro de contos.



Vinícius Ribeiro, artista. Começou a desenhar desde a mais tenra idade e nunca mais parou. Atualmente, estuda Artes Visuais na Universidade Estadual de Montes Claros. Colabora periodicamente como ilustrador para O Salto, além de ser autor do blog pessoal Pensamento Ilustrado (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Seu Joaquim



Acho que os que perdem a crença no amor, mesmo assim, acreditam na perenidade da esperança, guardam fagulhas de juventude na fonte serena da alma.

Diacho de eu perder a crença e, mesmo assim, achar que, de cova, tumba, túmulo e lápide, palavras ecoam no cerne destes pensamentos rasos.

Meu cérebro encontra imagens dele agora.

Um recuo no reino de tais imagens.

Como se memórias fossem as mãos de um Cronos subjugado ou os ponteiros de um relógio ditador que de modo inesperado se coloca a meu bel-prazer.

Agora, uma palavra feia: moribundo. Outra: catacumba. Caixão. Velório. Enterro. 
Agora, as palavras: cadeira e muletas. Outras: cozinha, quarto, sala, soleira.

Quintal, agora não. Que pode se tornar pranto, que pode se tornar choro.

Quando o via ali, eu costumava parar e ouvi-lo. O brilho do olhar em recusa constante à crueldade de tons vermelhos insistentes em tingir a íris e todo o corpo dos olhos com a arte da dor.

Não culpava a vida.

– Deus sabe o que faz.

Agora, ele capina o quintal, rastela folhas, molha plantas. Carinho pelas plantas é imenso. Carinho talvez amor. Diz-se contente com minha presença. Diz que saber preservar amizades é um dos maiores dons de poucos seres humanos, não só dos cães. Agora, pega um saco plástico, colhe algumas carambolas, simultaneamente olha para o céu. Agora, céu sem nuvens de chuva. Decerto, seu olhar é de agradecimento a anjos que quase ninguém vê.  Há piadas mordazes quanto ao fato de as galinhas olharem para o céu ao beberem água. Se repararmos em nosso movimento ao nos saciarmos, notaremos que se levamos o copo aos lábios, a cabeça se inclina levemente para o alto. Agora, antes de me entregar a sacola com os frutos, ele me diz que toda estação tem seus frutos. Coisa boa de existir Deus.

– Alimentar o corpo diverte o espírito. Leve para você se distrair.

Agora, algumas araras fazem orgia no alto do coqueiro e no raro pé de buriti.

– Arara! Arara! Arara! Arara!

Sua voz denota a debilidade trazida pelos anos, mas capto ondas de música no ar.

– Arara! Arara! Arara! Arara!

Repercussão do topo das árvores. Sua boa causa produz efeito.

– Bichos são obras de Deus. Gatos. Cachorros. Galinhas. Porcos. Bois. Cavalos. Também os bichos do mato que vivem na Terra, no ar e na água.

Agora, os peixes me lembram de um dia de pescaria.

– Bom pescar é apoitado, no barco. Pegar Piau Três-Pintas é bom, mas o melhor é o verdadeiro, o Dourado da goela grande, a Matrinchã, o Mandi Amarelo.

Sua empolgação inicial substituída por uma mudez concentrada, paciente. 

Às vezes, o sol cáustico castigava nossa pele. Ânsia sem sufoco. Às vezes, era a noite. Paisagem bucólica. Dois homens a pescar. O barco sob a lua na superfície mais calma das águas do rio São Francisco.

Sua fisgada era certeira. Pegava muitos peixes grandes, mas proibia-se de qualquer entusiasmo que pudesse ser confundido com arrogância. Dissimulava o riso, quando eu que não tinha o talento de pescador me equivocava com algum puxão forte e fisgava alguma Piabinha à toa.

– Você pegou pouco.

Era o que dizia, olhando para minha enfieira de Piabas, Piaus Jejos e Mandis Brancos. Pedia para eu escolher dois dos peixes maiores que tinha fisgado.

– Dá procê fazer um molho.

Depois.

Agora, as carambolas. Agora, as araras. Regador. Rastelo. Enxada.

Agora, hospital. Médico. Consulta. Diabetes. Câncer diagnosticado. Amputação cirúrgica.

Agora, cadeira-de-rodas, muletas.

Agora, brilho esmaecido de olhar sereno em luta contra a crueldade de tons vermelhos insistentes em tingir a íris e todo o corpo dos olhos com a arte da dor.

– Não deixe de me visitar, menino.

Uma lágrima se negando a ser derramada. Meus olhos um pouco molhados.

– Estou aleijado, mas não estou morto.

Agora, diz que saber preservar amizades é um dos maiores dons de poucos seres humanos, não só dos cães.

Agora, a feia palavra: moribundo.

Agora, um quadro na parede da sala.

Agora, uma voz que soa lá de além, voz de silêncio, voz de abnegação.

– Deus sabe o que faz.

Agora, saudade dói, dói, dói.


***


Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015) e Piolhos (2016), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).


Vinícius Ribeiro, artista. Começou a desenhar desde a mais tenra idade e nunca mais parou. Atualmente, estuda Artes Visuais na Universidade Estadual de Montes Claros. Colabora periodicamente como ilustrador para O Salto, além de ser autor do blog pessoal Pensamento Ilustrado (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)