quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Arribação: "Filhote de cobra" - Rafael Ornelas


É comum, no interior de Minas Gerais, o ato de ingerir filhotes de cobra quando se está apaixonado. O jovem casal deveria engolir uma cobra, do tamanho de uma minhoca, no ápice de sua paixão. O perigo de o animal se revoltar já na boca do apaixonado era o que instigava o menino e a menina a cometer a loucura; nada era perigoso demais aos amantes. Acontece que, para os habitantes dessa cidade, este ato era bastante simbólico: a cobra representava o incerto, a vida e o traiçoeiro.

Com uma linha o garoto amarrava a boca serrilhada do animal e entregava à garota, que sempre deveria ingerir primeiro. O ritual obrigava as mulheres engolir o réptil primeiro, pois que das complicações que poderiam vir de uma mordida, seu corpo era milenarmente preparado a lidar com a dor. Ansiosa por algo que nunca tinha feito antes, a jovem segurou a cobra pela pontinha do rabo e, fechando os olhinhos, jogou-a esôfago adentro. O rapaz foi o próximo; relutante, já não tinha certeza se queria fazer aquilo – rapazes nunca têm.

Uma vez no estômago, duas coisas podem acontecer à cobra: morrer, prematura, pelo suco gástrico de seu portador, ou resistir a este líquido, encouraçando sua pele fria e fazendo-se forte e resistente. O filhote que o garoto engolira morreu cedo e logo a brincadeira de beijos e carinhos se tornou banal e rotineira para ele. Já o da garota, este resistiu às provas biológicas de seu corpo, quase numa obstinada necessidade de manter-se vivo.

O maior sofrimento da menina não foi o de ser deixada, mas o da necessidade de lidar com um ser que crescia a cada dia. Quando incomodada, a cobra picava a carne da garota e emitia um silvo alto que se fazia ouvir por quem se aproximava. O réptil, é certo, um dia morreria, e as feridas deixadas por ela se cicatrizariam pela habilidade lenta e gradual do corpo humano de se curar; já a menina... ninguém morre com uma cobra na barriga.


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Rafael Ornelas tem vinte e dois anos e é estudante de Letras. Mora em Belo Horizonte, mas cresceu em Guanhães, interior de Minas Gerais. 
Ilustração: Vinícius Ribeiro (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)

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